sábado, 30 de abril de 2016

A MAIS ALTA TORRE - Manuel Gusmão



A MAIS ALTA TORRE

Sobre si mesmo, movendo-se, o mundo
voltou-se para o outro lado. E tu?

Viras-te para o outro lado de onde vem, segundo ouves,
o seu ruído concentrado na luz Cego;
ou como se o estivesses já imaginavas o som
das letras; tacteavas a máquina do canto;
perdias-te no labirinto dos ecos.

Cego; mas tens as mãos e elas uma memória
por fazer. As mãos lembram-se: recordam o coração.

Repetes, recapitulas, recuperas esse gesto antigo:


Estender as mãos em frente

não para a memória mas para a vida,
não para um sonho mas para a invenção
num gesto ou numa teia de gestos quase
                                                        automáticos,
                                                        [quase pensativos;

Ver pelas mãos o halo da lua que alucina
Poisar as mãos na madeira da mesa ou
na pedra do parapeito ou no pescoço alto
por onde subia o canto

(...)
Manuel Gusmão
"A mais alta torre"
A Terceira Mão, Lisboa: Caminho, pp. 11-14

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Pasárgada - Manuel Bandeira e Millôr Fernandes


Manuel Bandeira e Millôr Fernandes

 Pasárgada

Vou-me embora de Pasárgada
Sou inimigo do rei
Não tenho nada que quero
Não tenho e nunca terei
Vou-me embora de Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
A existência é tão dura
As elites tão senis
Que Joana, a louca da Espanha
Ainda é mais coerente
Do que os donos do país.
Millôr Fernandes
Folha de S. Paulo, março/2001)
  
Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive.
Manuel Bandeira
“Bandeira a Vida Inteira”. Editora Alumbramento
Rio de Janeiro, 1986, pág. 90)

quinta-feira, 28 de abril de 2016

BUSINESSMEN - Armando Silva Carvalho



BUSINESSMEN

Oh, os homens de negócios!
Em cada membro seu a águia faz o ninho.
No seu rosto as crianças descobrem-se intactas
e o coração rebenta no corpo
incendiado.
A paixão faz levantar o braço
ao que escolheu o risco,
ao que salta da boca da memória
com a força do seu peso
e faz de toda a vida a mesma casa
aberta às aves de fortuna.
Eu falo dos que lançam o olhar sobre uma coisa
como se a vissem pedir que lhe chamassem sua.
Os que transmitem à alma dos objectos
a febre dos sentidos, a gula que os desperta
com os dedos acesos e alucinados.
Atravessam o tempo, respiram a matéria,
com um simples assobio
fazem saltar no chão, amestrados,
um rebanho de escravos, medrosos
e impacientes.

Eu não pedi ao mundo a lastimosa água
que esta fila de monstros
deixa nos meus olhos.
Sorrio se os vejo empurrar
profetas ou coisas passageiras
para a mesma confusão a que chamam
história.
Que lhes doam os dentes quando as secretárias,
abrigadas no riso e nos papéis de crédito,
lhes mostram o programa do duelo diário.
Que lhes cortem o sexo depois da refeição
que arrasta atrás de si
o seu cortejo de pequenas vitórias.
Eles só prometem e trazem
o reino do triunfo.
Aos meus ouvidos chega a música voraz.
Sensíveis
às formas desiguais que se espelham nas margens
podemos respirar quando enfim adormecem
sobre os nossos corpos.
E tu – que te sentaste no canto mais espesso
Das palavras.
E tu – que te deitaste no sono
à espera que a balança do tempo
fizesse do desejo a única corrida,
colhe com eles as hastes de metal
do teu ramo suspeito
e oferece-o se puderes
à tua vida.

Armando Silva Carvalho
O QUE FOI PASSADO A LIMPO”
Obra poética
Assírio & Alvim
Pág. 266/268