quinta-feira, 9 de junho de 2016

O POVO - Pablo Neruda



O POVO

Lembro-me daquele homem e não se passaram
mais do que dois séculos desde que o vi,
não andou de cavalo nem de carroça:
descalço
anulou
as distâncias
e não levava espada nem armadura,
apenas redes ao ombro,
machado ou martelo ou pá,
e nunca espancou o seu semelhante:
a sua luta foi contra a água ou a terra,
contra o trigo para que houvesse pão,
contra a árvore gigante para que desse lenha,
contra os muros para abrir as portas,
contra a areia construindo muros
e contra o mar para o fazer parir.

Conheci-o e não se me apaga da memória.

Caíram em bocados as carroças,
a guerra destruiu portas e paredes,
a cidade tornou-se num punhado de cinzas,
transformaram-se em pó todas as roupas,
mas para mim ele subsiste ainda,
sobrevive na areia,
quando antes parecia ser ele
o menos recordado.

No suceder de gerações e gerações
foi por vezes meu pai ou meu parente
ou apenas, sendo ele ou não,
aquele que não voltou à sua casa
porque a água ou terra o engoliram
ou uma máquina ou uma árvore o deceparam
ou foi aquele enlutado carpinteiro
que ia atrás do caixão, sem lágrimas,
ou alguém que não tinha nome,
que se chamava metal ou madeira,
para quem todos os outros olharam com indiferença
vendo o formigueiro
sem olharem para a formiga
e quando os seus pés não se mexeram,
pois o pobre de tão cansado tinha morrido,
não viram nunca que o não viam:
outros pés havia já nos lugares onde estivera.

Os outros pés eram ele próprio,
as outras mãos também,
o homem renovava-se:
quando parecia já ultrapassado
era novamente ele,
ali estava outra vez cavando a terra,
cortando pano, mas sem camisa,
ali estava e não estava, como dantes,
tinha partido e estava de novo ali,
e como nunca teve cemitério,
nem campa, nem o seu nome foi gravado
sobre pedra que britou suando,
ninguém sabia jamais quando chegava
nem soube nunca quando esta morrendo,
de tal maneira que só quando o pobre pôde
ressuscitou outra vez sem ser notado.

Era o homem certamente, sem herança,
sem vaca, nem bandeira,
e não se diferençava dos outros,
os outros que eram ele,
visto de cima era cinzento como o subsolo,
como o couro era pardo,
colhendo trigo era amarelo,
no fundo da mina era negro,
era cor de pedra no castelo,
no barco pesqueiro era cor de atum
e cor de cavalo na planície:
como poderia alguém saber ao certo
se era o inseparável, o elemento,
terra, carvão ou mar vestido de homem?

E onde viveu crescia
tudo quanto o homem tocava:
a pedra hostil,
quebrada
pelas suas mãos,
tornava-se ordenada
e uma a uma formaram
a recta claridade do edifício,
com suas mãos fez pão,
pôs os comboios em movimento,
povoaram-se de aldeias as distâncias,
outros homens nasceram,
chegaram as abelhas,
e porque o homem cria e se multiplica
a primavera foi em direcção ao mercado
por entre padarias e pombas.

O pai dos pães foi esquecido,
ele que traçou a terra, pisando
e abrindo regos, acarretando areia,
quando tudo ficou pronto já não existia,
a sua existência ofertava-a, isso era tudo.
Foi trabalhar noutros lugares, e depois
morrer rolando lentamente
como um seixo do rio:
arrastando pelas águas levou-o a morte.

Eu, que o conheci, vi-o descer
até ser somente o que deixava:
ruas que apenas pôde conhecer,
casas que jamais habitaria.

E volto a vê-lo, e espero cada dia.

Vejo-o no seu caixão ressuscitado.

Distingo-o entre aqueles
que são seus semelhantes
e parece-me que não pode ser,
que assim não chegamos a lado nenhum,
que dessa forma não se conquista a glória.

Eu penso que este homem
devia estar num trono, bem seguro e coroado.

Penso que os que fizeram tantas coisas
deviam ser senhores de todas as coisas,
E os que fazem o pão deviam comer!

E deviam ter luz os que trabalham nas minas!

Mas chega de tantas coisas sombrias!

Chega de pálidos desaparecidos!

Nem mais um homem passe sem reinar.

Nem uma só mulher sem o seu diadema.

Para todas as mãos luvas de ouro.

Frutos de sol para toda a escuridão!

Eu conheci aquele homem e quando pude,
quando tive olhos para olhar
e voz para falar
procurei-o entre os campos, e disse-lhe
apertando-lhe um braço que não se desfizera ainda:

«Partirão todos, mas tu ficarás vivendo.

Tu acendeste a vida.

Tu criaste o que era teu.»

Por isso ninguém se enfade quando
pareço que estou sozinho e não estou sozinho,
quando não estou com ninguém, e falo para todos:

Alguém me está escutando e não dão por isso,
mas aqueles que eu canto e conhecem a razão
esses continuarão a nascer e povoarão o mundo.



El pueblo

De aquel hombre me acuerdo yo no han pasado
sino dos siglos desde que lo vi,
no anduvo ni a caballo ni en carroza:
a puro pie
deshizo
las distancias
y no llevaba espada ni armadura,
sino redes al hombro,
hacha o martillo o pala,
nunca apaleó a ninguno de su especie:
su hazaña fue contra el agua o la tierra,
contra el trigo para que hubiera pan,
contra el árbol gigante para que diera leña,
contra los muros para abrir las puertas,
contra la arena construyendo muros
y contra el mar para hacerlo parir.

Lo conocí y aún no se me borra.

Cayeron en pedazos las carrozas,
la guerra destruyó puertas y muros,
la ciudad fue un puñado de cenizas,
se hicieron polvo todos los vestidos,
e él para mí subsiste,
sobrevive en la arena,
cuando antes parecía
todo imborrable menos él.

En el ir y venir de las familias
a veces fue mi padre o mi pariente
o apenas si era él o si no era
tal vez aquel que no volvió a su casa
porque el agua o la tierra lo tragaron
o lo mató una máquina o un árbol
o fue aquel enlutado carpintero
que iba detrás del ataúd, sin lágrimas,
alguien en fin que no tenía nombre,
que se llamaba metal o madera,
ya a quien miraron otros desde arriba
sin ver la hormiga
sino el hormiguero
y que cuando sus pies no se movían,
porque el pobre cansado había muerto,
no vieron nunca que no lo veían:
había ya otros pies en donde estuvo,

Los otros pies eran él mismo,
también las otras manos,
el hombre sucedía:
cuando ya parecía transcurrido
era el mismo de nuevo,
allí estaba otra vez cavando tierra,
cortando tela, pero sin camisa,
allí estaba y no estaba, como entonces,
se había ido y estaba de nuevo,
y como nunca tuvo cementerio,
ni tumba, ni su nombre fue grabado
sobre la piedra que cortó sudando,
nunca sabía nadie que llegaba
y nadie supo cuando se moría,
así es que sólo cuando el pobre pudo
resucitó otra vez sin ser notado.

Era el hombre si duda, sin herencia
sin vaca, sin bandera,
y no se distinguía entre los otros,
los otros que eran él,
desde arriba era gris como el subsuelo,
como el cuero era pardo,
era amarillo cosechando trigo,
era negro debajo de la mina,
era color de piedra en el castillo,
en el barco pesquero era color de atún
y color de caballo en la pradera:
cómo podía nadie distinguirlo
si era el inseparable, el elemento,
tierra, carbón o mar vestido de hombre?

Donde vivió crecía
cuando el hombre tocaba:
la piedra hostil,
quebrada
por sus manos,
se convertía en orden
y una a una formaron
la recta claridad del edificio,
hizo el plan con sus manos,
movilizó los trenes,
se poblaron de pueblos las distancias,
otros hombres crecieron,
llegaron las abejas,
y porque el hombre crea y multiplica
la primavera caminó al mercado
entre panaderías y palomas.

El padre de los panes fue olvidado,
él que cortó y anduvo, machacando
y abriendo surcos, acarreando arena,
cuando todo existió ya no existía,
él daba su existencia, eso era todo.
Salió a otra parte a trabajar, y luego
se fue a morir rodando
como piedra del río:
aguas abajo lo llevó la muerte.

Yo, que lo conocí, lo vi bajando
hasta no ser sino lo que dejaba:
calles que apenas pudo conocer,
casas que nunca y nunca habitaría.

Y vuelvo a verlo, y cada día espero.

Lo veo en su ataúd y resurrecto.

Lo distingo entre todos
los que son sus iguales
y me parece que no puede ser,
que así no vamos a ninguna parte,
que suceder así no tiene gloria.

Yo creo que en el trono debe estar
este hombre, bien calzado y coronado.

Creo que los que hicieron tantas cosas
deben ser dueños de todas las cosas.
Y los que hacen el pan deben comer!

Y deben tener luz los de la mina!

Basta de pálidos desaparecidos!

Ni un hombre más que pase sin que reine.

Ni una sola mujer sin su diadema.

Para todas las manos guantes de oro.

Frutas de sol a todos los oscuros!

Yo conocí aquel hombre y cuando pude,
cuando ya tuve ojos en la cara,
cuando ya tuve la voz en la boca
lo busqué entre las tumbas, y le dije
apretándole un brazo que aún no era polvo:

«Todos se irán, tú quedarás viviente.

Tú encendiste la vida.

Tú hicieste lo que es tuyo.»

Por eso nadie se moleste cuando
Parece que estoy solo y no estoy solo,
No estoy con nadie y hablo para todos:

Alguien me está escuchando y no lo saben,
pero aquellos que canto y que lo saben
siguen naciendo y llenarán el mundo.

Pablo Neruda


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