CAPITULO 27
A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família
(a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho,
tempo.
Família na mesa. Cena do filme Lavoura Arcaica
de Luiz Fernando Carvalho
de Luiz Fernando Carvalho
— Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu
rosto, meu filho; essa é a colheita de quem abandona a casa por uma vida
pródiga.
— A prodigalidade também existia em nossa casa.
— Como, meu filho?
— A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
— Nossa mesa é comedida, é austera, não existe desperdício
nela, salvo nos dias de festa.
— Mas comemos sempre com apetite.
— O apetite é permitido, não agrava nossa dignidade,
desde que seja moderado.
— Mas comemos até que ele desapareça; é assim que cada
um em casa sempre se levantou da mesa.
— É para satisfazer nosso apetite que a natureza é
generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por
merecê-los.
Não fosse o apetite, não teríamos forças para buscar o
alimento que torna possível a sobrevivência. O apetite é sagrado, meu filho.
— Eu não disse o contrário, acontece que muitos
trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível,
mas não conseguem apaziguar a fome.
— Você diz coisas estranhas, meu filho. Ninguém deve
desesperar-se, muitas vezes é só uma questão de paciência, não há espera sem
recompensa, quantas vezes eu não contei para vocês a história do faminto?
— Eu também tenho uma história, pai, é também a
história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar
sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo
alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de
tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.
— Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada,
roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto. Nada te
faltava. Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de famintos, que nenhuma
delas agora vem a propósito, tornando muito estranho tudo o que você fala. Faça
um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu
pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua cabeça. Para
que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas idéias. Palavra
com palavra, meu filho.
— Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza,
uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu
poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi
o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer
ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse
encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
— E o que é que não te davam aqui dentro?
— Queria o meu lugar na mesa da família.
— Foi então por isso que você nos abandonou: porque
não te dávamos um lugar na mesa da família?
— Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis, ao deixar
a casa, foi poupar-lhes o olho torpe de me verem sobrevivendo à custa das
minhas próprias vísceras.
— O pão contudo sempre esteve à mesa, provendo
igualmente a necessidade de cada boca, e nunca te foi proibido sentar-se com a
família, ao contrário, era esse o desejo de todos, que você nunca estivesse
ausente na hora de repartir o pão.
— Não falo deste alimento, participar só da divisão
deste pão pode ser em certos casos simplesmente uma crueldade: seu consumo só
prestaria para alongar a minha fome; tivesse de sentar-me à mesa só com esse
fim, preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse a vida.
— Do que é que você está falando?
— Não importa.
— Você blasfemava.
— Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez a vida
eu falava como um santo.
— Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de
trabalho ao lado de teus irmãos hão quebrar o orgulho da tua palavra, te
devolvendo depressa a saúde de que você precisa.
— Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor
fala, existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe
uma poderosa semente de saúde.
— Não há proveito em atrapalhar nossas idéias, esqueça
os teus caprichos, meu filho, não afaste o teu pai da discussão dos teus
problemas.
— Não acredito na discussão dos meus problemas, não
acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma
planta nunca enxerga a outra.
— Conversar é muito importante, meu filho, toda
palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar,
vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no
fundamento de toda prática, vinga, e se expande, e perpetua, desde que seja
justo.
— Admito que se pense o contrário, mas ainda que eu
vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos
tardios, quando colhidos.
— É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos
frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem
semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando
plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação, já é
um bem que transferimos, se transferimos a espera para gerações futuras, pois
há um gozo intenso na própria fé, assim como há calor na quietude da ave que
choca os ovos no seu ninho. E pode haver tanta vida na semente, e tanta fé nas
mãos do semeador, que é um milagre sublime que grãos espalhados há milênios, embora
sem germinar, ainda não morreram.
— Ninguém vive só de semear, pai.
— Claro que não, meu filho; se outros hão de colher do
que semeamos hoje, estamos colhendo por outro lado do que semearam antes de
nós. É assim que o mundo caminha, é esta a corrente da vida.
— Isso já não me encanta, sei hoje do que é capaz esta
corrente; os que semeiam e não colhem, colhem contudo do que não plantaram;
deste legado, pai, não tive o meu bocado. Por que empurrar o mundo para frente?
Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés também;
por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não vejo
diferença, tanto faz que as coisas andem para frente ou que elas andem para
trás.
— Não quero acreditar no pouco que te entendo, meu
filho.
— Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de
boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os
membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso
só mesmo a vileza do aleijão que, na falta das mãos, recorre aos pés para
aplaudir o seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do
peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o
feio que consente o belo...
— Continue.
— E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico,
menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e
assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam,
acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se
vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu
opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada
por seu cinismo.
— É muito estranho o que estou ouvindo.
— Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo;
erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio
do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.
— Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo
menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo
isso?
— Não quero dizer nada.
— Você está perturbado, meu filho.
— Não, pai, eu não estou perturbado.
— De quem você estava falando?
— De ninguém em particular; eu só estava pensando nos
desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que
não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava.
— Quero te entender, meu filho, mas já não entendo
nada.
— Misturo coisas quando falo, não desconheço esses
desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me
contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há
farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro.
Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou
dizendo.
— Mas sonega clareza para o teu pai.
— Já disse que não acredito na discussão dos meus
problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a
intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo, e não
descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo;
contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor
ao mundo sua fragilidade.
— Corrija a displicência dos teus modos de ver: é
forte quem enfrenta a realidade; e depois, estamos em família, que só um insano
tomaria por ambiente hostil.
— Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a
mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é
galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não
nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos
arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas
para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte,
a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que negue direito à vida.
— Você me assusta, meu filho, sem te entender, entendo
contudo teus disparates: não há hostilidade nesta casa, ninguém te nega aqui o
direito à vida, não é sequer admissível que te passe esse absurdo pela cabeça!
— É um ponto de vista.
— Refreie tua costumeira impulsividade, não responda
desta forma para não ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós
sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos sempre para
vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem necessitasse, o apoio da
família!
— O senhor não me entendeu, pai.
— Como posso te entender, meu filho? Existe obstinação
na tua recusa, e isto também eu não entendo. Onde você encontraria lugar mais
apropriado para discutir os problemas que te afligem?
— Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de
tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos
limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente:
traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo:
corremos graves riscos quando falamos.
— Não receba com suspeita e leviandade as palavras que
te dirijo, você sabe muito bem que conta nesta casa com nosso amor!
— O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui
descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor
ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se
supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum
disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se
imagina.
— Já basta de extravagâncias, não prossiga mais neste
caminho, não se aproveitam teus discernimentos, existe anarquia no teu
pensamento, ponha um ponto na tua arrogância, seja simples no uso da palavra!
— Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não
me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor
percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu
depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele
simplesmente um ramo de urtigas.
— Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de
lado o teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao
murmúrio do demônio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo
humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez com
esta confusão!
— Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que
não quero criar mais confusão.
— Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem
destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o
que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com
presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as idéias,
desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos
acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em nossa casa há de padecer
também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos
cegar; ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não pode
desviar, ninguém há de confundir nunca o que não pode ser confundido, a árvore
que cresce e frutifica com a árvore que não dá frutos, a semente que tomba e
multiplica com o grão que não germina, a nossa simplicidade de todos os dias
com um pensamento que não produz; por isso, dobre a tua língua, eu já disse,
nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família! Não foi o amor,
como eu pensava, mas o orgulho, o desprezo e o egoísmo que te trouxeram de
volta à casa!
Quanta amargura meu pai juntava à sua cólera! E que
veleidade a minha, expor-lhe a carcaça de um pensamento, ter triturado na mesa
imprópria uns fiapos de ossos, tão minguados diante da força poderosa de sua
figura à cabeceira. Encolhido, senti num momento a presença da mãe às minhas
costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa,
tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem me voltar, pude ler com
clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos para o meu
pai: "Chega, Iohána! Poupe nosso filho!"
— Estou cansado, pai, me perdoe. Reconheço minha
confusão, reconheço que não me fiz entender, mas agora serei claro no que vou
dizer: não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para
casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é a solidão, já
sei o que é a miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um
passo sequer da nossa porta; daqui pra frente, quero ser como meus irmãos, vou
me entregar com disciplina às tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos
campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os deixarei bem depois
de o sol se pôr; farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha
embriaguez, vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer
de coração sincero, pai, todo o teu amor.
— Tuas palavras abrem meu coração, querido filho,
sinto uma luz nova sobre esta mesa, sinto meus olhos molhados de alegria,
apagando depressa a mágoa que você causou ao abandonar a casa, apagando
depressa o pesadelo que vivemos há pouco. Cheguei a pensar por um instante que
eu tinha outrora semeado em chão batido, em pedregulho, ou ainda num campo de
espinhos. Vamos festejar amanhã aquele que estava cego e recuperou a vista!
Agora vai descansar, meu filho, a viagem foi longa, a emoção foi grande, vai
descansar, querido filho.
E o meu suposto recuo na discussão com o pai logo
recebia uma segunda recompensa: minha cabeça foi de repente tomada pelas mãos
da mãe, que se encontrava já então atrás da minha cadeira; me entreguei feito
menino à pressão daqueles dedos grossos que me apertavam uma das faces contra o
repouso antigo do seu seio; curvando-se, ela amassou depois seus olhos, o nariz
e a boca, enquanto cheirava ruidosamente meus cabelos, espalhando ali, em
língua estranha, as palavras ternas com que sempre me brindara desde criança:
"meus olhos" "meu coração" "meu cordeiro";
largado naquele berço, vi que o pai saía para o pátio, grave, como se todo
aquele transbordamento de afeto se passasse à sua revelia; empunhava o mesmo
facão com que entrara pouco antes ali na copa, ia agora reunirse de novo às
minhas irmãs perdidas numa azáfama animada em torno da mesa tosca, lá debaixo
do telheiro dos fundos, onde preparavam as carnes para a minha festa; e eu
tinha os olhos nessa direção, e me perguntava pelos motivos da minha volta, sem
conseguir contudo delinear os contornos suspeitos do meu retorno, quando notei,
além do pátio, um pouco adentrado no bosque escuro, o vulto de Pedro: andava
cabisbaixo entre os troncos das árvores, o passo lento, parecia sombrio,
taciturno.
Raduan Nassar
----(Pode descarregar este livro sublime AQUI)
Raduan Nassar
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"Lavoura arcaica ocupa a mesa da
grande literatura mundial. Disseram que o livro de Raduan Nassar lembra O
Grande Sertão Veredas (de Guimarães Rosa) e Vidas Secas (de Graciliano Ramos).
Lembra mesmo, são clássicos. Nas vidas secas da lavoura arcaica há fartura de
verbos ásperos e dores arenosas. O embate de pai contra filho (trecho
reproduzido acima) lembra o explosivo diálogo dos irmãos karamazóvi (Ivã e
Aliócha) nos capítulos A Revolta e O Grande Inquisidor."
1 comentário:
Gostei imenso!Vou continuar a ler,não hoje,estou extremamente cansada para saborear a obra.Abraço
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