segunda-feira, 4 de junho de 2018

Panfleto - Jorge de Sena

Panfleto

Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes:
Tanto fervor desviado e perdido!
Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo
e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!

Há uma vida inteira a jogar e gastar
no pano verde imenso das campinas do mundo.
Há desertos cativos de uma ausência dos povos.
Há uma guerra devastando a vida,
enquanto a supuserem redimida!

E em nós a redenção quase perdida!...

Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma,
vamos gritar aos homens que os enganam,
que não é a força, que não é a glória,
que não é o sol nem a lua nem as estrelas,
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade,
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas,
-- a redenção sou eu, se formos nós sem forma,
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!

Aqui está a redenção. Tomai-a toda.
E se é verdade a fome,
se  é verdade o abismo,
se é verdade o pensamento húmido
que pestaneja ansioso nos cortejos públicos,
se são verdade as redenções que mentem:

Matem essa gente para salvar a Vida!
E matem-me com elas para que as queime ainda!

Jorge de Sena

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