Manoel de Andrade em Lisboa
os punhos para a luta.
O sol não nasceu naquele dia
e durante vinte
anos ficou proibido
amanhecer.
Nossas vidas…
algumas em botão
desabrocharam numa paisagem
devastada.
Nossas canções
e o encanto daqueles festivais
foram sufocados pela
sinfonia marcial
dos regimentos.
Nosso norte foi
retirado do horizonte,
nossas bússolas
quebradas
e o destino da pátria ancorado nos
quartéis.
Durava cinco anos o outono oficial
quando no parlamento
disseram basta aos generais
e eis que o ditador
apagou as luzes derradeiras
e no palco fugaz e ilusório do poder
abriu-se o quinto
ato da tragédia
nacional.
Então todas as sanhas
foram desatadas
amarrando nossos
punhos
acuando nossos sonhos.
As tribunas do povo foram derrubadas
e a todos foi imposto o sabor
da abstinência
nosso grito de protesto amordaçado
nossas canções
silenciadas
nossa coragem
esmagada pela esteira
dos blindados
invadiram nossos
lares
nossas almas
foram devassadas
acorrentaram a liberdade
e cuspiram na justiça
maquiaram a verdade,
esbofetearam nossos sonhos
e a nação
insultada vestiu-se de vergonha.
Pelas guaritas
do poder mil retinas te
observam
mil bocas
te delatam
e uma sombra
segue teus passos…
Depois teus
punhos são
algemados
e gargalham sobre
teus direitos.
Pela química
do suplício tu
confessas o inconfessável
e os ideais de todos agonizam quando
geme um valente.
Nos porões
da “inteligência” se aprimoram os gritos do martírio
e só a morte estanca a dor
do interrogatório.
Enfim o pânico
desterra a esperança
e uma amargura imensurável
se aninha no coração da pátria.
Naquele inverno
longo e cruel
as sombras
tenebrosas da opressão cobriram as terras do Cruzeiro.
As sementes não ousaram renascer
os frutos
encruaram
as flores foram
encarceradas, desterradas, abatidas.
Aqueles foram nossos
anos de infortúnio
nossos “anos
dourados” pelo
genocídio cotidiano
pela dieta
do fel e da impotência
pela assombrosa
dimensão do medo
pelo silêncio
angustiante dos vencidos.
Quando só
restou a escuridão no fim
do túnel
e nossos olhos mendigavam por
uma réstia de luz,
uma esperança…
então surgiste tu…
e tu te chamavas Resistência…
Todos sabíamos que
virias
porque tu
surges na encruzilhada revolucionária
dos povos
e a tua história
é a história da própria
humanidade.
E eis porque tua bandeira
tem mil pátrias
a tua face tem mil rostos
e o teu braço tem mil punhos.
E eis por que escrevo
teu nome
na linha de fogo
dos meus versos
para denunciar
os que mancharam tua imagem
para dizer que a tua saga
será reescrita pela pátria
comovida
e por isso te chamo
Marighella, o grande camarada
o combatente da
primeira hora,
na ação e na vanguarda.
E te chamo
Carlos Lamarca, o capitão rebelde
que honrou com
sangue a farda
guerrilheira.
Com respeito
te chamo Gregório Bezerra
e saúdo a coragem sexagenária arrastada pelas ruas
de Recife.
Minhas lágrimas
ainda cantam por
ti, Vladimir Herzog
porque sinto que
uma parte de todos
nós, sobreviventes, foi contigo pendurada.
Sim…, tu
te chamavas Resistência
e me lembro agora do teu primeiro martir
quando ainda
era juvenil
tua beleza
e um estampido emudeceu o teu
discurso de mil
vozes.
Então um
corpo tombou no fim
da tarde
e por isso te chamo
Edson Luiz e canto dezessete primaveras
sangrando sangrando sangrando numa multidão de lágrimas
e relembro um coração de estudante
escorrendo palpitante
num peito perfurado.
Sim…, tu
te chamavas resistência
e eram muitos e
muitos os teus
nomes.
E hoje, em memória de
tantas vidas silenciadas,
trago, nesse solitário
canto de combate,
o testemunho e
o tributo da poesia
pra remarcar o nosso inconquistável território
e descrever a tua face com as palavras Ibiúna e Araguaia
e por isso digo dez,
digo cem, digo mil
e digo que
quisera nominar todos
os bravos.
E agora que o tempo
secou a imensa lama
e os sobreviventes saíram das trincheiras;
agora que
exumamos nossas vítimas
e os verdugos a
tudo assistem impunemente;
perguntamos se o tempo
também secou o rio
de lágrimas,
se o coração
das mães já
despiu o amargo luto
se os órfãos
receberam as respostas
se os amantes
encontraram outros braços.
Pergutamos se todos
os dossiês já
foram abertos
se todas as senhas
foram decifradas
porque prostituiram a justiça
impunemente
e se os pretorianos já
cumpriram a penitência.
Perguntamos se todos
os nossos mortos
já receberam sepultura
se a história já revelou o preço
da tragédia
e quem
arrancará de nossa carne
esse espinho
lancinante.
Perguntamos…, até
quando durará essa cumplicidade
e esse silêncio
quando será revogado esse
decreto
e em que tribunal
responderão enfim os acusados.
Eis aí
nossa Guernica!!!
mas tu
ressurgiste triunfante dos escombros
trazendo em teu corpo as cicatrizes do calvário.
Foste afogada com
o sangue dos caídos
mas és agora
a redenção e a herança
dos vencidos.
Tu és o tribunal
na consciência dos tiranos
dos oprimidos
és o baluarte e a véspera
da vitória
a espada de
Espártaco eras tu
fostes as lanças
araucanas de Lautaro e de Caupolicán
e a imagem gloriosa da América
estampada na praça
do martírio de Tupac Amaru.
O sonho americano de Bolívar foi escrito
com teu
nome
porque tu
és a fonte, o cântaro,
a água que
embriaga,
sede perene
da alma, da vida
tu és a dádiva
suprema.
Foste a tribuna
dos abolicionistas
e assinaste a glória
da pátria com
a mão de uma princeza
és o hino dos militantes, o cântico triunfal, delírio
bandeira dos inconfidentes, ainda
que tardia
Liberdade, Liberdade
meu único
amor
meu peito
de viola te
entoa enamorado.
Saúdo os que
ousaram preservar seu
sonho
e em nome de todas as bandeiras
libertárias, vos saúdo…
a história vos saúda
porque nosso
destino está tatuado nas estrelas…
a liberdade vos saúda
no significado revolucionário da verdade…
a beleza vos saúda
no lirismo imaculado da poesia.
E lá atrás,
muito antes
desse imenso pressentir,
quando meus
passos cruzavam o chão
fraterno de outras pátrias,
quando a América era
uma só trincheira
e a luz fulgurante de uma ilha iluminava,
do Caribe, os nossos sonhos,
com minhas
canções de bardo
itinerante
Manoel de Andrade
2 comentários:
... entretanto em Serralves comandam os "criativos" engravatados
... entretanto em Serralves comandam os "criativos" engravatados
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