quarta-feira, 31 de outubro de 2018

BRASIL 77 - Sophia de Mello Breyner Andresen


 BRASIL 77

Brasil de canto e doçura
Em vosso e meu coração
Brasil que une e mistura
Todas as raças da terra

Brasil imensa aventura
Em nossa imaginação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não

Brasil dos Bandeirantes
E das gentes emigradas
Em tuas terras distantes
As palavras portuguesas
Ficaram mais silabadas
Como se nelas houvesse
Desejo de ser cantadas
Brasil espaço e lonjura
Em nossa recordação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não
Brasil de Manuel Bandeira
Que ao franquismo disse não
E cujo verso se inscreve
Neste poema invocado
Em vosso e meu coração
Brasil de Jorge de Lima
Bruma sonho e mutação
Brasil de Murilo Mendes
E Cecília a tão secreta
Brasileira dos Açores
Brasil de Carlos Drummond
Brasil do pernambucano
João Cabral de Melo que
Deu à fala portuguesa
Novo corte e agudeza
Brasil da arquitectura
Com nitidez de coqueiro
Gente que fez da ternura
Nova forma de cultura
País de transformação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não

Brasil de D. Helder Câmara
Que nos mostra e nos ensina
A raiz de ser cristão
Brasil imensa aventura
Terra de renovação
Mas ao Brasil que tortura
Só podemos dizer não





terça-feira, 30 de outubro de 2018

Data - Sophia de Mello Breyner Andresen



Data
 
Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo da ameaça

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

RESISTÊNCIA - Luís Veiga Leitão



RESISTÊNCIA

Não. Digo à explosão de ameaça
E à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
Encalhada em bancos de ferro
E ao cordame dos nervos, fustigado,
A ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
Que se inventem mais nós. 

domingo, 28 de outubro de 2018

O INVENTOR DE RIOS - Vergílio Alberto Vieira



O INVENTOR DE RIOS

Atraídos ao engano,
Pelo homem, que os esqueceu,
Sobem à terra, que o ano
A terra desmereceu.


O sol bebe-lhe o sangue;
Cansa-a, de fome, o arado.
Pobre terra, terra exangue,
Quem, pois, lhe dará cuidado.


Terá, o homem, o que quer,
Quando aperta a carestia,
Se assim a Deus aprouver
Como ao pão de cada dia.


Nasça, das mãos, a promessa
De outro tempo, outra vontade.
Qual jornada que começa,
Quando a vida é novidade.


Nasçam mares, onde o deserto
Castigou quem nada tem,
P’ra que o mundo então liberto
Não seja terra de alguém.


Inventem-se novas ‘speranças,
Novos caminhos, sinais,
Laços de amor, alianças,
Entre povos imortais.


(inéditos)