VÉSPERA
Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e
nove.
É preciso…
é imprescindível denunciar o
compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita
que atravesso,
esta noite que me escorre numa
ampulheta de pressentimentos.
Um desespero impessoal e
sinistro paira sobre as horas…
O ano se curva sob um tempo
que me esmaga
porque esmaga a pátria
inteira…
Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.
Pelos ecos rastreados dos meus
versos
chegam os
pretorianos do regime.
Alguém já foi detido,
interrogado, ameaçado
e por isso é necessário
antecipar a madrugada.
E eis porque esse canto já
nasce amordaçado
porque surge no limiar do
pânico.
Meu testemunho é hoje um
grito clandestino
meus versos não conhecem a luz
da liberdade
nascem iluminados pelo
archote da esperança
para se esconderem na
silenciosa penumbra das gavetas.
Escrevo numa página velada
pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá
florescer.
Escrevo num horizonte
longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado
pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os
crimes destes anos puderem ser contados
para o dia em que o banco dos
réus estiver ocupado pelos torturadores
Contudo, nesta hora, neste
agora
o tempo se reparte pra quem
parte
e um coração se parte nos
corações que ficam…
O amanhecer caminha para desterrar
os nossos gestos
para separar
nossas mãos e nossos olhos
e nesta eternidade para
pressentir o que me espera
já não há mais tempo para
dizer quanto quisera.
Tudo é uma amarga despedida
nesta longa madrugada
e neste descompassado
palpitar,
contemplo meus livros
perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas
utopias,
bússolas, faróis, retalhos da
beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a
Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo ainda os pedaços do
meu mundo
nos amigos do penúltimo
momento
nas lágrimas de um benquerer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua
inocência adormecida.
Nesta agonia…
neste abismo de incertezas…
abre-se o itinerário
clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga,
outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e
dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida
no sacrário da alma
e no coração…
um passaporte chamado… liberdade.
Manoel de Andrade
Curitiba,
14 de março de 1969
Este
poema consta do livro POEMAS PARA A LIBERDADE editado por Escrituras
O FACTO e o ACTO
"O
poema deixou gravada a ansiedade do autor na madrugada de sua fuga do Brasil,
em 14 de março de 1969. É o testemunho angustiante de momentos marcados por
pressentimentos e pânico. Fala da pátria esmagada pela repressão e pelo intenso
patrulhamento político-ideológico que se instalou no país com o Acto
Institucional nº. 5, imposto pela ditadura militar em dezembro de 1968. Fala de
prisões e interrogatórios e de almas devassadas pela tortura. Fala de
suas canções amordaçadas e, contudo, canta profeticamente para um distante
amanhecer em que sua poesia irá florescer e por isso escreve para um dia
em que tantos crimes poderiam ser contados, para um tempo anunciado
pelo hino dos sobreviventes. O poema é um doloroso gesto de
despedida e, ao mesmo tempo, iluminado pelo brilho da esperança.
Dor e esperança ampliadas pela visão e memória dos seus livros perfilados na
tristeza, dos amigos dos últimos momentos, nas lágrimas de um benquerer e no
beijo de adeus em sua filhinha adormecida. O poeta antecipa poeticamente a
madrugada e sai pela porta estreita da incerteza em busca de uma rota de fuga.
Leva intactos seus sonhos, uma bandeira escondida na alma e no coração o
passaporte da liberdade. Manoel de Andrade deixou o Brasil, alertado da sua
prisão iminente pelo conteúdo do seu poema “Saudação a Che Guevara”, escrito em
outubro de 1968, e panfletado em universidades e sindicatos de Curitiba.
O poeta deixava o país exactamente numa época em que sua poesia começava a ser
conhecida nacionalmente, divulgada em grandes jornais e publicações como a
Revista Civilização Brasileira."
O poema Véspera consta de seu livro Poemas para a Liberdade, com quatro edições no exterior, que foi lançado pela Editora Escrituras, em edição bilíngue, a 15 de Abril de 2009, no Espaço Cultural Alberto Massuda , Curitiba.
O poema Véspera consta de seu livro Poemas para a Liberdade, com quatro edições no exterior, que foi lançado pela Editora Escrituras, em edição bilíngue, a 15 de Abril de 2009, no Espaço Cultural Alberto Massuda , Curitiba.
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