V
Nos teus
dedos nasceram horizontes
e aves verdes
vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
Uma grande,
imensa fidelidade
No Alentejo, em fins de julho ou princípio de
agosto, o olhar
atinge o seu zénite. No horizonte raso
e limpo tudo
parece pegado à terra: muros,
árvores, medas de palha,
montes, quando
se avistam distantes. Um delírio de luz sobe à cabeça,
como a música
das cigarras, e faz doer.
As coisas todas estalam como romãs
maduras, e ficam cheias de brilhos. Mesmo dentro de casa,
com portas
e janelas trancadas, a luz entra pelas frestas,
entorna-se pelas tijoleiras e reflecte-se, tenuemente rosada,
na brancura das paredes. No pátio, uma oculta água
ergue-se num repuxo exíguo – e é pura delícia. Cheira a barro
e a cal, cheira
a coentros e a queijo
seco. Cheira
ao que é da terra
e regressa à terra.
Um som
de guizos, o trote
miúdo das mulas,
o grito de uma criança,
custam a distinguir, de tão
longe vêm. Neste longo,
ardente verão
do sul apenas
as cigarras têm modulações
amplas. À roda tudo
é silêncio e secura.
Os próprios homens
quase não
têm fala, mas
os seus olhos
queimam como duas pedras
expostas ao sol durante
milhares de dias.
Só eles
afirmam que nem
tudo no Alentejo nasce e morre
acachapado à terra. Eles,
e uns pombos bravos
que subitamente rasgam o céu, como quem foge ao áspero,
ardido, amargo coração
do meu país.
Falei da luz do Alentejo, mas não é ela que
verdadeiramente me liga
e religa a esta terra: é demasiado
ácida, falta-lhe uma doçura
última, mediterrânea,
que só
encontraremos mais a sul.
O que fascina aqui
é uma conquista do espírito
sem paralelo
no resto do país,
numa palavra: um
estilo. O melhor
do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem,
o equilíbrio. Estas formas
puras, sóbrias de linha e de cor, que vão da paisagem
à arquitectura, da arquitectura ao vestuário,
do vestuário ao cante, são a expressão
de um espírito
terreno cioso
de limpidez, capaz
da suprema elegância
de ser simples.
Povertà é talvez
a palavra ajustada a uma estética alheia
ao excesso, ao desmedido,
ao espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia,
o rigor; à paixão,
um concentrado
amor. O Alentejo é inimigo
do barroco em
nome da claridade.
Mundo cerrado
(quase apetecia escrever:
encarcerado), sem dúvida;
mas dos seus
limites tira
o alentejano a força. O seu olhar, na
impossibilidade de ir mais
longe, irá cada
vez mais
fundo, e o que
lhe sai das mãos
é fruto de uma paisagem
enxuta, quase
hirta, de uma magreza
reduzida ao osso. Uma paisagem essencial,
de que pode orgulhar-se um homem, quando lhe
reflecte o rosto ou
a alma.
Fui talvez parar
longe, em
busca de uns sinais,
de uns indícios que
me permitissem entrar
na pintura de Armando Alves. É que me parece que não se
nasce impunemente no Alentejo, e menos ainda quem um dia se descobre pintor.
Que relação
há entre a sua
pintura e a terra
em que
procurei debruçar-me? E haverá relação? Eu creio que sim. Mais:
creio que Armando Alves se descobriu
alentejano ao mesmo tempo
que e descobria pintor.
O amor à pintura
confundiu-se nele com o amor ao Alentejo, acabou por
ter um só nome. Tal aliança o
conduz naturalmente (ou se preferem: fatalmente),
não à flor
das coisas mas
ao seu aroma penetrante. O Alentejo entra nos
seus quadros
como à noite
entramos em casa:
para desvendar uma intimidade. É o amigo,
o confidente, o ombro
onde apoiar a
cabeça. É a sua
pena, o seu
consolo. É uma maneira
de falar, um
gesto só,
um segredo
impossível de esconder.
O pintor pode mudar
de cidade, trocar
de luz, olhar
devagar pontes
e águas, aperfeiçoar
técnicas, experimentar
processos, viajar
– o Alentejo continuará ali como grande, imensa fidelidade,
porque ninguém
pode mudar de coração,
e era de um
coração que
estávamos a falar.
É um Alentejo um
pouco diferente
do meu, menos
queimado e nu, visto
ou sonhado noutra época,
com verdes
searas onduladas e uma poeira súbita que às vezes se
levanta nos carreiros,
quando os pastores
ao anoitecer conduzem o gado
ao monte. Um
Alentejo com sombras
azuladas e charcos de água morta, onde o lirismo delgado dos juncos
se demora, e a serenidade
pousa devagar
como as cegonhas
nos campanários.
Um Alentejo onde
uma revoada de pássaros,
ou uma fogueira,
rompe do piorno e da esteva, deixando atrás
uns estalidos breves.
Um Alentejo quase
plácido, com
tonalidades foscas de elegia
feita à memória
de alguém que
nos abandonou muito
cedo. Mas
o que não
deixa nunca
de estar presente, no meu e no seu
Alentejo, é aquele horizonte
onde o olhar
se estende e consome, e a solidão sobe alta como a lua.
Eugénio
de Andrade
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