terça-feira, 16 de outubro de 2018

Uma grande, imensa fidelidade - Eugénio de Andrade

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.



Uma grande, imensa fidelidade

No Alentejo, em fins de julho ou princípio de agosto, o olhar atinge o seu zénite. No horizonte raso e limpo tudo parece pegado à terra: muros, árvores, medas de palha, montes, quando se avistam distantes. Um delírio de luz sobe à cabeça, como a música das cigarras, e faz doer. As coisas todas estalam como romãs maduras, e ficam cheias de brilhos. Mesmo dentro de casa, com portas e janelas trancadas, a luz entra pelas frestas, entorna-se pelas tijoleiras e reflecte-se, tenuemente rosada, na brancura das paredes. No pátio, uma oculta água ergue-se num repuxo exíguo – e é pura delícia. Cheira a barro e a cal, cheira a coentros e a queijo seco. Cheira ao que é da terra e regressa à terra. Um som de guizos, o trote miúdo das mulas, o grito de uma criança, custam a distinguir, de tão longe vêm. Neste longo, ardente verão do sul apenas as cigarras têm modulações amplas. À roda tudo é silêncio e secura. Os próprios homens quase não têm fala, mas os seus olhos queimam como duas pedras expostas ao sol durante milhares de dias. Só eles afirmam que nem tudo no Alentejo nasce e morre acachapado à terra. Eles, e uns pombos bravos que subitamente rasgam o céu, como quem foge ao áspero, ardido, amargo coração do meu país.
Falei da luz do Alentejo, mas não é ela que verdadeiramente me liga e religa a esta terra: é demasiado ácida, falta-lhe uma doçura última, mediterrânea, que só encontraremos mais a sul. O que fascina aqui é uma conquista do espírito sem paralelo no resto do país, numa palavra: um estilo. O melhor do Alentejo é uma liberdade que escolheu a ordem, o equilíbrio. Estas formas puras, sóbrias de linha e de cor, que vão da paisagem à arquitectura, da arquitectura ao vestuário, do vestuário ao cante, são a expressão de um espírito terreno cioso de limpidez, capaz da suprema elegância de ser simples. Povertà é talvez a palavra ajustada a uma estética alheia ao excesso, ao desmedido, ao espectacular. Ao luxo prefere-se a modéstia; à anarquia, o rigor; à paixão, um concentrado amor. O Alentejo é inimigo do barroco em nome da claridade. Mundo cerrado (quase apetecia escrever: encarcerado), sem dúvida; mas dos seus limites tira o alentejano a força. O seu olhar, na impossibilidade de ir mais longe, irá cada vez mais fundo, e o que lhe sai das mãos é fruto de uma paisagem enxuta, quase hirta, de uma magreza reduzida ao osso. Uma paisagem essencial, de que pode orgulhar-se um homem, quando lhe reflecte o rosto ou a alma.
Fui talvez parar longe, em busca de uns sinais, de uns indícios que me permitissem entrar na pintura de Armando Alves. É que me parece que não se nasce impunemente no Alentejo, e menos ainda quem um dia se descobre pintor. Que relação há entre a sua pintura e a terra em que procurei debruçar-me? E haverá relação? Eu creio que sim. Mais: creio que Armando Alves se descobriu alentejano ao mesmo tempo que e descobria pintor. O amor à pintura confundiu-se nele com o amor ao Alentejo, acabou por ter um só nome. Tal aliança o conduz naturalmente (ou se preferem: fatalmente), não à flor das coisas mas ao seu aroma penetrante. O Alentejo entra nos seus quadros como à noite entramos em casa: para desvendar uma intimidade. É o amigo, o confidente, o ombro onde apoiar a cabeça. É a sua pena, o seu consolo. É uma maneira de falar, um gesto só, um segredo impossível de esconder. O pintor pode mudar de cidade, trocar de luz, olhar devagar pontes e águas, aperfeiçoar técnicas, experimentar processos, viajar – o Alentejo continuará ali como grande, imensa fidelidade, porque ninguém pode mudar de coração, e era de um coração que estávamos a falar.
É um Alentejo um pouco diferente do meu, menos queimado e nu, visto ou sonhado noutra época, com verdes searas onduladas e uma poeira súbita que às vezes se levanta nos carreiros, quando os pastores ao anoitecer conduzem o gado ao monte. Um Alentejo com sombras azuladas e charcos de água morta, onde o lirismo delgado dos juncos se demora, e a serenidade pousa devagar como as cegonhas nos campanários. Um Alentejo onde uma revoada de pássaros, ou uma fogueira, rompe do piorno e da esteva, deixando atrás uns estalidos breves. Um Alentejo quase plácido, com tonalidades foscas de elegia feita à memória de alguém que nos abandonou muito cedo. Mas o que não deixa nunca de estar presente, no meu e no seu Alentejo, é aquele horizonte onde o olhar se estende e consome, e a solidão sobe alta como a lua.

Eugénio de Andrade



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