quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Livros que nos deliciam

Não consigo guardar só para mim o que me enaltece.


LEIAM:
“O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”
de
Ana Margarida de Carvalho

A última página:

…Casimira, eu não posso parar, nem ficar nesta aldeia que me foi ingrata, no meio desta gente que foi traidora, nem neste país em forma de caixão, prossigo o meu degredo, sigo para norte à procura de um falcão que se afeiçoe a mim,
   Maria Angelina,
talvez na terra onde as pessoas têm cabelos cor de espiga e a água gela nos poços, e como pensas encontrar essa terra distante?, hei-de lá chegar, e o acaso é o melhor companheiro de viagem, tens a certeza, Simão, a certeza absoluta?, a única certeza absoluta que tenho é a de que não tenho, e voltas?, quem sabe, um dia, quando as vozes de dentro da cabeça de Maria Alzira se tornarem unas e sonoras, mas e a afeição que eu sinto por ti, que lhe faço, Simão?, não conta nada na tua decisão?, sim, conta, deixo-te o meu suspiro, e com cara de quem se eu soubesse não me metia nisto fez-se à estrada a cantar, fiapos de sílabas comidas pelo vento,
camponês alentejano
camponês agricultor
tu trabalhas todo o ano
dás produto ao lavrador
tua vida é um engano
ninguém dá o seu valor
camponês alentejano
Casimira ficou-se a olhar por algum tempo o vulto de Simão a afastar-se, que faria ela sozinha com um suspiro de homem?, devia ter dado ouvidos às outras, aquele homem demasiado sonhador não lhe servia, já a mãe se queixava do mesmo em relação ao seu pai canhoto, que Deus tem, mas a esse as vértebras quebradas deixaram-no imóvel como uma árvore, viajava com os olhos no caminho, de trás para diante, invejando as pernas de quem passava, havia de gostar de saber que Simão se pusera a andar sem parança, escutou uma respiração ofegante que vinha de dentro da casa , depois um gemido cavado, a subterrânea dor, ainda esperou a ver se o seu olhar picava as costas do caminheiro como mil pássaros ansiosos a debicarem-lhe a consciência, e se Simão voltava a cabeça na sua direcção, dois braços abertos no escuro, nada, prosseguia num passo acelerado, já era quase um pontinho alvo da camisa enfolada no anoitecer, Casimira levou as mãos à cabeça, os cabelos a soltarem-se por entre os dedos, deixou-as escorregar para os olhos  enxutos de lágrimas, que o vento secava logo ao brotarem, sempre muito pouco sentimental, e menos se compadecia com desgostos de amor, que faço eu com o suspiro de um homem?, lamentou-se Casimira, razão tinha Maria Alzira, há pessoas assim, partem sempre antes de as coisas importantes acontecerem, menos mal, menos um a atrapalhar, o gemido ganhava profundidade de gruta, Casimira pegou na bacia de água e levou-a para dentro, sabia o que fazer, a porta a bater mercê da ventania a um ritmo cardíaco, acelerado, a urgência de nascer, crateras nas raízes das árvores arrancadas,
à força.  

1 comentário:

Janita disse...

Não conheço a autora, mas o aperitivo que nos deixou é bastante saboroso e tentador, mormente porque fala de quem não se acomoda, de gente que parte em busca daquilo que não tem e lhe faz falta, e, sobretudo, tem um trautear de cantares alentejanos...

Vou guardar o nome, quando o encontrar, trago comigo um exemplar.

Boa noite e obrigada pela sugestão de leitura.