Não
consigo guardar só para mim o que me enaltece.
LEIAM:
“O
Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça”
de
Ana
Margarida de Carvalho
A
última página:
…Casimira,
eu não posso parar, nem ficar nesta aldeia que me foi ingrata, no meio desta
gente que foi traidora, nem neste país em forma de caixão, prossigo o meu degredo,
sigo para norte à procura de um falcão que se afeiçoe a mim,
Maria Angelina,
talvez
na terra onde as pessoas têm cabelos cor de espiga e a água gela nos poços, e
como pensas encontrar essa terra distante?, hei-de lá chegar, e o acaso é o
melhor companheiro de viagem, tens a certeza, Simão, a certeza absoluta?, a
única certeza absoluta que tenho é a de que não tenho, e voltas?, quem sabe, um
dia, quando as vozes de dentro da cabeça de Maria Alzira se tornarem unas e
sonoras, mas e a afeição que eu sinto por ti, que lhe faço, Simão?, não conta
nada na tua decisão?, sim, conta, deixo-te o meu suspiro, e com cara de quem se
eu soubesse não me metia nisto fez-se à estrada a cantar, fiapos de sílabas
comidas pelo vento,
camponês alentejano
camponês agricultor
tu trabalhas todo o ano
dás produto ao lavrador
tua vida é um engano
ninguém dá o seu valor
camponês alentejano
Casimira
ficou-se a olhar por algum tempo o vulto de Simão a afastar-se, que faria ela
sozinha com um suspiro de homem?, devia ter dado ouvidos às outras, aquele
homem demasiado sonhador não lhe servia, já a mãe se queixava do mesmo em
relação ao seu pai canhoto, que Deus tem, mas a esse as vértebras quebradas
deixaram-no imóvel como uma árvore, viajava com os olhos no caminho, de trás para
diante, invejando as pernas de quem passava, havia de gostar de saber que Simão
se pusera a andar sem parança, escutou uma respiração ofegante que vinha de
dentro da casa , depois um gemido cavado, a subterrânea dor, ainda esperou a
ver se o seu olhar picava as costas do caminheiro como mil pássaros ansiosos a
debicarem-lhe a consciência, e se Simão voltava a cabeça na sua direcção, dois
braços abertos no escuro, nada, prosseguia num passo acelerado, já era quase um
pontinho alvo da camisa enfolada no anoitecer, Casimira levou as mãos à cabeça,
os cabelos a soltarem-se por entre os dedos, deixou-as escorregar para os olhos
enxutos de lágrimas, que o vento secava
logo ao brotarem, sempre muito pouco sentimental, e menos se compadecia com
desgostos de amor, que faço eu com o suspiro de um homem?, lamentou-se
Casimira, razão tinha Maria Alzira, há pessoas assim, partem sempre antes de as
coisas importantes acontecerem, menos mal, menos um a atrapalhar, o gemido
ganhava profundidade de gruta, Casimira pegou na bacia de água e levou-a para
dentro, sabia o que fazer, a porta a bater mercê da ventania a um ritmo
cardíaco, acelerado, a urgência de nascer, crateras nas raízes das árvores
arrancadas,
à força.
1 comentário:
Não conheço a autora, mas o aperitivo que nos deixou é bastante saboroso e tentador, mormente porque fala de quem não se acomoda, de gente que parte em busca daquilo que não tem e lhe faz falta, e, sobretudo, tem um trautear de cantares alentejanos...
Vou guardar o nome, quando o encontrar, trago comigo um exemplar.
Boa noite e obrigada pela sugestão de leitura.
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