sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A história foi enormemente exagerada - Margarida Vale de Gato


A história foi enormemente exagerada 


Cravos, sim, cravos que pedia,

de Abril sorridente acrescentei,

a 1ª florista, à saída da praça,

de esquina (que também a poesia

ensina a auto-cartografia

e a hetero-história), atrás

de postiça bonomia só parecia

mal compreender, são

caros nesta altura, cravos

não.

 

Cravos sim, cravos que queria,

de Abril reincidente me movia:

a 2ª florista, recolhida

do largo, no alto da colina,

volvidos oito lustros menos

um ano da revolução (a poesia

efetua também cálculo mental

e paleografia), furtou olhos

 com misto se possível de enfado

e alarme – nunca se sabe que fará

uma democrática defraudada –

cravos desculpe não houve ocasião

dos normais costumo ter, para

os arranjos (há neste ramo

profissionais assim, com específica

convicção de que flores

são um género de robbialac

de revestir interiores),

encarnados, cravos,

não.

 

Cravos, sim, cravos repetia,

que já estridente Abril me distendia

de pesar o coração.

A 3ª florista, um quarteirão

abaixo do liceu da minha filha

(mas será, como em todos, neste caso

absolutamente circunstancial

a associação entre poesia e real –

e sempre outra a verdade desta),

tinha ar que só vendia

artigos de luto, e de todo o modo

nublosa igualmente se

descomprometia imodesta

o cravo é flor que não presta

quando se demora a vender

e agora ninguém nos quer

o negócio já só serve

quando se precisa,

não por celebração,

antes eram mãos cheias

mas os molhos vêm já

desfeitos, e pouco dá

um pé só, ou dois, cravos, raros,

não

 

(e eu então com os mesmos

49 anos de efeméride

a pensar se afinal foi tudo tanga

o cravo que enfiou a criança

na garganta da espingarda

como se fora ânfora

a pensar, eu sem especial

sentimento nacional,

neste país

errado, ou então

de mentira no passado

pois a ser verdade “o que se conta”,

traiçoeira wikipedia,

“foi uma florista de Lisboa que iniciou a distribuição

dos cravos vermelhos pelos populares que os ofereceram aos soldados”

como não despertaria o episódio

senão uma corrida aos cravos

com oferta de segunda dúzia pelas grandes superfícies

pelo menos um sentimento de classe

entre mercadores e povo,

empreendedores de flores?

decerto alguém exagerou descaradamente,

poderia lá haver em Portugal

uma revolução, poderia haver

soldo para soldados

ou saída para esta soda ou tão imaginativo molde

para portugal nas lonas, portugal avaro e curvado

a esquecer o mar, onde perversamente

a palavra solidário mais depressa se associa a gíria economicista

e a palavra estado só a isto que nos vai na alma

e até capitalista deixou de ter... envolvência

portugal onde murcham indiscriminadamente

quaisquer insurgências ou espontos de alegria

emigram cérebros, morrem os outros todos,

portugal que inventou a lobotomia, portugal só bom

para jarras de talhão)

esperança, memória, praia, cravos,

não

 

Cravos, sim, cravos insisti

de Abril reticente perseguia

mesmo se, caída a face,

vestira eu já também o nacional

disfarce da bruma

e seu especioso desenvolvimento

lírico-pastoso, o Queixume;

Lá dentro, entra, e é bem

feita se só agora vieste aqui

o 4º florista, R. Forno do Tijolo, 28,

chama-se Fox Flor, e enche o facebook

com festivas pétalas e vivos estames

(por que não há-de veicular o verso

também a discriminação positiva

no seio dos engenhos coetâneos?)

o que não é especialmente ativista

mas refresca

e embora confessando que a lembrança

fora mais casual que premeditada,

pois afinal só sabe um pouco melhor

a quantas anda, e está lá para vender

e eu para ser cliente

acolhe-me com o consolo

que sinto no seu horto

acabrunhada por voltar pouco

e, magoada e leda, ao fim dos versos

e da revolução, colho e pago

os oito pés

e me despeço, cravos,

sim,

de finalmente Abril, mesmo se pouca a força

e se é capaz do que se esquece.

 Margarida Vale de Gato

(inédito)

Margarida Vale de Gato.

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