A história foi enormemente exagerada
Cravos, sim, cravos que pedia,
de Abril sorridente acrescentei,
a 1ª florista, à saída da praça,
de esquina (que também a poesia
ensina a auto-cartografia
e a hetero-história), atrás
de postiça bonomia só parecia
mal compreender, são
caros nesta altura, cravos
não.
Cravos sim, cravos que queria,
de Abril reincidente me movia:
a 2ª florista, recolhida
do largo, no alto da colina,
volvidos oito lustros menos
um ano da revolução (a poesia
efetua também cálculo mental
e paleografia), furtou olhos
com misto se possível de enfado
e alarme – nunca se sabe que fará
uma democrática defraudada –
cravos desculpe não houve ocasião
dos normais costumo ter, para
os arranjos (há neste ramo
profissionais assim, com específica
convicção de que flores
são um género de robbialac
de revestir interiores),
encarnados, cravos,
não.
Cravos, sim, cravos repetia,
que já estridente Abril me distendia
de pesar o coração.
A 3ª florista, um quarteirão
abaixo do liceu da minha filha
(mas será, como em todos, neste caso
absolutamente circunstancial
a associação entre poesia e real –
e sempre outra a verdade desta),
tinha ar que só vendia
artigos de luto, e de todo o modo
nublosa igualmente se
descomprometia imodesta
o cravo é flor que não presta
quando se demora a vender
e agora ninguém nos quer
o negócio já só serve
quando se precisa,
não por celebração,
antes eram mãos cheias
mas os molhos vêm já
desfeitos, e pouco dá
um pé só, ou dois, cravos, raros,
não
(e eu então com os mesmos
49 anos de efeméride
a pensar se afinal foi tudo tanga
o cravo que enfiou a criança
na garganta da espingarda
como se fora ânfora
a pensar, eu sem especial
sentimento nacional,
neste país
errado, ou então
de mentira no passado
pois a ser verdade “o que se conta”,
traiçoeira wikipedia,
“foi uma florista de Lisboa que iniciou a
distribuição
dos cravos vermelhos pelos populares que os
ofereceram aos soldados”
como não despertaria o episódio
senão uma corrida aos cravos
com oferta de segunda dúzia pelas grandes superfícies
pelo menos um sentimento de classe
entre mercadores e povo,
empreendedores de flores?
decerto alguém exagerou descaradamente,
poderia lá haver em Portugal
uma revolução, poderia haver
soldo para soldados
ou saída para esta soda ou tão imaginativo molde
para portugal nas lonas, portugal avaro e curvado
a esquecer o mar, onde perversamente
a palavra solidário mais depressa se associa a
gíria economicista
e a palavra estado só a isto que nos vai na alma
e até capitalista deixou de ter... envolvência
portugal onde murcham indiscriminadamente
quaisquer insurgências ou espontos de alegria
emigram cérebros, morrem os outros todos,
portugal que inventou a lobotomia, portugal só
bom
para jarras de talhão)
esperança, memória, praia, cravos,
não
Cravos, sim, cravos insisti
de Abril reticente perseguia
mesmo se, caída a face,
vestira eu já também o nacional
disfarce da bruma
e seu especioso desenvolvimento
lírico-pastoso, o Queixume;
Lá dentro, entra, e é bem
feita se só agora vieste aqui
o 4º florista, R. Forno do Tijolo, 28,
chama-se Fox Flor, e enche o facebook
com festivas pétalas e vivos estames
(por que não há-de veicular o verso
também a discriminação positiva
no seio dos engenhos coetâneos?)
o que não é especialmente ativista
mas refresca
e embora confessando que a lembrança
fora mais casual que premeditada,
pois afinal só sabe um pouco melhor
a quantas anda, e está lá para vender
e eu para ser cliente
acolhe-me com o consolo
que sinto no seu horto
acabrunhada por voltar pouco
e, magoada e leda, ao fim dos versos
e da revolução, colho e pago
os oito pés
e me despeço, cravos,
sim,
de finalmente Abril, mesmo se pouca a força
e se é capaz do que se esquece.
(inédito)
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