quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Esse grande simulacro - Mario Benedetti


Esse grande simulacro

 

Cada vez que nos dão lições de amnésia

como se nunca houvesse existido

os ardentes olhos da alma

ou os lábios da pena órfã

cada vez que nos dão aulas de amnésia

e nos obrigam a apagar

a embriaguez do sofrimento

convenço-me de que meu território

não é a ribalta de outros

 

Em meu território há martírios de ausência

resíduos de sucessos / subúrbios enlutados

mas também singelezas de rosa

pianos que arrancam lágrimas

cadáveres que ainda olham de seus hortos

lembranças imóveis em um poço de colheitas

sentimentos insuportavelmente atuais

que se negam a morrer no escuro

 

O esquecimento está tão cheio de memória

que às vezes não cabem as lembranças

e rancores precisam ser jogados pela borda

no fundo o esquecimento é um grande simulacro

ninguém sabe nem pode / ainda que queira / esquecer

um grande simulacro abarrotado de fantasmas

esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento

como se fosse o caminho de santiago

 

o dia ou a noite em que o esquecimento estale

exploda em pedaços ou crepite /

as lembranças atrozes e as de maravilhamento

quebrarão as trancas de fogo

arrastarão afinal a verdade pelo mundo

e essa verdade será a de que não há esquecimento


Mario Benedetti

 

*

Ese gran simulacro

Cada vez que nos dan clases de amnesia

como si nunca hubieran existido

los combustibles ojos del alma

o los labios de la pena huérfana

cada vez que nos dan clases de amnesia

y nos conminan a borrar

la ebriedad del sufrimiento

me convenzo de que mi región

no es la farándula de otros

 

en mi región hay calvarios de ausencia

muñones de porvenir / arrabales de duelo

pero también candores de mosqueta

pianos que arrancan lágrimas

cadáveres que miran aún desde sus huertos

nostalgias inmóviles en um pozo de otoño

sentimientos insoportablemente actuales

que se niegan a morir allá en lo oscuro

 

el olvido está tan lleno de memoria

que a veces no caben las remembranzas

y hay que tirar rencores por la borda

en el fondo el olvido es un gran simulacro

nadie sabe ni puede / aunque quiera / olvidar

un gran simulacro repleto de fantasmas

esos romeros que peregrinan por el olvido

como si fuese el camino de santiago

 

el día o la noche en que el olvido estalle

salte en pedazos o crepite /

los recuerdos atroces y los de maravilla

quebrarán los barrotes de fuego

arrastrarán por fin la verdad por el mundo

y esa verdad será que no hay olvido

Donde se pone el dedo en la llaga de una herida que no ha cerrado, no cierra ni cerrará.

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