Requiem por Salvador Allende
Por Ruy Belo
Foi de súbito no outono juro solenemente que o
foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas
recentes
primavera no chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os
leio
enfrento meu velho borges o muito meu
destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da
água
sentia-me importante conquistara palavras negação
do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na
praia
talvez voz metafísica decerto voz de um
privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente
sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não
saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da
água
quando o irmão miguei veio pequeninamente pela
areia
e convulsivamente me falou da situação no chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de
solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que
palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via
homens
via problemas de homens e as coisas que via eram
coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por
detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te
denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente
pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos
profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos
generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das
alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro playa larga
praia comprida mas praia deserta e não só na
palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos
milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns
passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo
conquistado
tão inefável como por exemplo o de tancazo
atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo
martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje
históricas
do grande cavalheiro que decerto foi allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por
exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou
então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as
direitas
País amável calorosa entrada em Santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante
em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome salvador allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o inundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir
com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do
mar
tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma
ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas
existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que
leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal
apenas diz
muito obrigada salvador allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva
uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por allende
começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até
à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e
o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo frente popular tomou
pela via legal conta do poder no chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas
direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e
pouco democrático
Falavas tu dizias a verdade
falavas com palavras de verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco
antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e
sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no
parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra
quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de georges
braque
mas de nós todos aves verticais aves a última
estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
allende do cansaço dos problemas da preocupação
constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha
com bombas em lugar das mãos
allende já há muito tempo sem uns olhos para
olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que
fala
pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em las piedras
dei cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da
terra
Sol que te pões e nascerás no chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos
apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de
um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa
praça de lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do chile chegou-me não há muito a amizade do
hernán
que em madrid conheci e não responde há muito às
minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes
sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me
também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de
amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as
estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar
por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem
pacífico
O washington post falava já do golpe dias antes
do golpe
ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali
mesmo
as autoridades militares as autoridades militares
as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos
foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos
nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán
urrutia meu amigo austral
que em barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
marcelo coddo professor em concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o
nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala
um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da
vida
embora porventura tenha visto aquela sequência de
fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escreve este poema no jornal com as notícias
frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses
locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro
moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o
da cova da iria
e dos cortejos presidenciais o dessas tão
espontâneas manifestações
voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do
terceiro mundo
terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos
trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da
chamada unidade
popular
e discursos de allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a
noite do outono
sobre campos relvados de momento habitados pela
escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que
religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio
ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado salvador allende
que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a
esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda
allende não morreste estás de pé no trigo
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