quarta-feira, 2 de março de 2016

CONTRATOS À LUZ DAS VELAS - ARMANDO SILVA CARVALHO



(Pawel Kuczynski)

CONTRATOS À LUZ DAS VELAS

Do pouco que me espanta ainda nesta vida
fica um lugar ambíguo
para essa multidão de peregrinos
que vai dar a Fátima.
A tosca imagem, miudinha e pobre, infantilizada,
deve ser um sinal,
uma marca, para o todo absoluto dos desejos,
para tudo o que não é mas deseja ser.
Um alvo de universos no mais recolhido coração
de cada criatura, de vela acesa na mão,
e nos lábios a repetida melopeia
do apelo.

Ali o deus principal não tem qualquer lugar,
Cristo é uma personagem secundária, quase um figurante,
é apenas alguém que faz nascer a mãe primeira,
doadora de bens, saúde, a que perdoa,
protege e não exige nada,
a que não define nada, nada prega,
e nem tem uma doutrina para se entrar no céu.

Entre as línguas da fé esta fixação
numa imagem primária, maternal, remota,
remonta ao mais terreno, regressa ao natural da vida,
é o avesso da morte,
do trágico, age por contrato.
E toda a cova da iria se transforma num gigantesco regaço,
no colo debruado por luzes e por rogos,
na imensidão de um seio.

Os anos vão-me dando estes baixos delírios
de um pensar redondo,
rasteiro, rente ao chão e à carne, tresmalhado.
Pesado de paixão.
Com ele eu vou seguindo estas cenas arcaicas,
quase intransmissíveis.
Não são só as mulheres, sedentas de prodígios,
há homens de meia-idade,
de rosto grave e duro e talhado à faca.
É muita gente junta a pretender salvar-se,
ou pelo menos salvar algo de concreto e que lhe diz respeito.

Lembro-me de ter lido um dia que um poeta
ainda soviético
ficara deslumbrado com toda a cerimónia.
Lembrava-lhe o temor,
a força arrebatada pela crença, o transe colectivo
dos mujiques, de rastos, almas trespassadas
e vivas ainda,
por essa santa loucura russa
que também destruiu o frágil coração de Rilke.
Não é tanto o milagre, mas a espera dele,
essa prestação que tão certeira fere
as contas da alma e os transportes do corpo.
 De joelhos, duras caminhadas, um preço arrancado
ao percurso,
e àquela fogueira de velas tão sinistra.

Essa luz brutal
que por fim se torna confidente
nas mãos de cada um.

ARMANDO SILVA CARVALHO
de “A SOMBRA DO MAR” pag.71
ASSÍRIO & ALVIM

Sem comentários: