sábado, 3 de novembro de 2018

Deus de Violência - Cândido Portinari


Quanta coisa eu contaria se pudesse
E soubesse ao menos a língua como a cor.
Portinari, 25 de outubro de 1958


Deus de Violência

Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso

Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado

Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo

Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas

No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carrega uma lata
De água! Só há umas gotas — Dá uma só

Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semeando.


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