quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Último poema para Elina - Manuel Alberto Valente


Último poema para Elina

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


As nossas bocas já não tecem
com a mesma pureza
o mundo novo que sonhámos
Elina

Agora na claridade incerta do dia
recordo
que recordar o belo é já
rasgar um pouco a casca do futuro

Nem sempre nossos passos percorreram
o caminho imprescindível
cem vezes as palavras se esqueceram
de acender sobre o rosto da terra
a flauta da paz e da alegria

Nosso tempo Elina
é tempo de divisas
tempo de labirintos e de sombras:
nem sempre descobrimos a saída
necessária a luz reveladora
nem sempre o nosso olhar levou aos outros
a proibida mensagem de longínquas searas


Nosso tempo Elina
é tempo de contradições
tempo de gente cortada

Porém o que fizemos
vive cresceu
liberto nas esquinas da cidade

Recordêmo-lo pois antes de partir
sem lágrimas Elina
jamais nossas bocas tecendo
com a mesma pureza
o mundo novo que sonhámos
mas fiéis à primeira promessa

Em sua rota pessoal cada um colocará
pedra sobre pedra
esforço sobre esforço

– porque este é tempo de divisas
tempo de gente cortada
mas dentro dele já cresce
a semente inviolada
onde o futuro floresce


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