sábado, 16 de novembro de 2019

CARTA DE GUIA - Sebastião da Gama



CARTA DE GUIA
 

Mesmo com este calor eu quero ir.
 Aos tropeções, aos bordos, de qualquer maneira,
 porque há pessoas que estão à minha espera
 e que nasceram pra eu me importar com elas.
 Há vinte e dois anos que estou a falar de mim
 e hei-de falar de mim a vida inteira:
 tanta coisa que eu tenho para dizer,
 e passar ao papel!
 A anatomia da minha alma, principalmente,
 que há-de ficar escrita,
 pra que vejam como é esquisito um homem por dentro.
Mas agora, neste momento,
 e noutros iguaizinhos a este,
 ponho de parte o binóculo com que me espreito
 e graças ao qual tudo o que em mim é pequeno me parece grande
 e vou prà frente, apesar do calor,
 apesar de ir como um bêbado.
 Há mãos estendidas, lábios secos.
 Casas aonde o Sol tem pudor de entrar, de tão infectas.
 Aonde Deus taparia o nariz, se chegasse à porta.
 Quando as palavras são como pensos de linho,
 não há nada melhor para a alma, feita de carne em chaga de um homem.
 Por isso é que vou indiferente a este calor de Junho.
 O binóculo fica à espera.
 Eu fico à espera.
 Largo barcos e redes,
 não aconteça que os outros todos que estão à minha espera
 tenham morrido já, quando eu chegar,
 ou já não tenham ouvidos para as minhas palavras,
 nem lábios que percebam
a frescura de água que eu levar...

In Itinerário Paralelo

1 comentário:

Janita disse...

Infelizmente, Sebastião da Gama não é Poeta muito conhecido entre nós, e eu aprecio-o tanto!
A culpa não é propriamente dos amantes de Poesia, e refiro-me não aos Poetas, mas aos que sem escrever poemas gostam de os ler e apreciam quem os escreve.

Esta «Carta de Guia» que nos apresenta não o conhecia eu, e este, conhecia-o o Cid Simões?

http://francis-janita.blogspot.com/2019/08/pobrinhapobrinha.html

Peço desculpa, não pretendo publicitar o meu espaço, mas gostaria de saber se conhece o poema.

Desejo-lhe um boa e poética noite.

Saudações blogueiras. :)