quinta-feira, 15 de abril de 2021

Bibliocausto - João Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa

discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL)

Entrevistado por Günter Lorenz 'Diálogo com Guimarães Rosa'

 

Bibliocausto


Que a minha mão não trema
ao deitar no fogo forte e primitivo
todos os traidores
que me deram veneno.

Queimarei o frio
geometrizador da vida
lapidada através de lentes bem polidas
(ah, o horror daquela pedra voando,
tangida pela mão de não sei que demónio,
e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…

Queimarei o detrator,
maníaco e vaidoso,
que quis deter a vida numa câmara lenta,
para a tingir depois numa câmara escura
(ah, o inferno galopando às doidas,
nos cavalos sem freios
da vontade cega e sem destino!…)…

Queimarei o louco,
ébrio de orgulho,
raivoso de fraqueza,
que destilava haxixe em frascos verdes
na paisagem alpina
(ah, o prazer com que ainda o queimaria
em cada uma das voltas pavorosas
do seu Eterno Retorno!…)…

E só ficará comigo
o riso rubro das chamas, alumiando o preto
das estantes vazias.
Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas,
e de olhos bem abertos…


João Guimarães Rosa

do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 138-139.

 

 

 

Sem comentários: