quarta-feira, 6 de abril de 2022

Poema para a Catarina - Ruy Belo

 

Poema para a Catarina

 

Hei-de levar-te filha a conhecer a neve
tu que sabes do sol e das marés
mas nunca repousaste os teus pequenos pés
na alvura que sĂ³ longe e em ti houve

Tinha estado na morte e nĂ£o pudera
aguentar tamanha solidĂ£o
mas depois tive a companhia do nevĂ£o
e tu hĂ¡s-de vir filha com a primavera

E o deslumbrante resplendor da alegria
tua fidelidade eterna Ă  vida
jĂ¡ nĂ£o permitirĂ£o tua partida
quando raiar fatal o novo dia

As barcas carregadas com as rosas
virĂ£o perto daquela pura voz
abandonada pelos meus longĂ­nquos avĂ³s
em lagoas profundas perigosas

NĂ£o me afecta o mĂ­nimo cuidado
sinto-me vertical sinto-me forte
embora leve em mim até à morte
a cabeça de um príncipe coitado

Naquelas madrugadas primitivas
eu segregava um secreto pranto
vizinho da alegria enquanto
pelos dias tu ias de mĂ£os vivas


O costume da minha solidĂ£o
Ă© ver pela janela as oliveiras
que de todas as Ă¡rvores foram as primeiras
que tocaram meu jovem coraĂ§Ă£o

Purificado pelo tempo estou
um tempo de feroz esquecimento
vem minha filha vem neste momento
em que eu liberto ao teu encontro vou

Recordo-me do teu cabelo de chuva
quando tu caminhavas Ă¡gil e ladina
pelos desfiladeiros da neblina
nessa distante regiĂ£o da uva

Minha paixĂ£o viril serena pelos ritos
deseja que na minha companhia
tu sejas imolada Ă  alegria
na surda regiĂ£o alheia aos gritos

NĂ£o olhes o meu rosto devastado pela idade
a vida para mim Ă© como se chovesse
mas se viesses seria como se me acontecesse
cantar contigo a perene mocidade

O tempo em que viesses sim seria
um tempo vertebrado um tempo inteiro
e nĂ£o meras palavras arrancadas ao tinteiro
e alinhadas em fugaz caligrafia

Viesses tu que a tua vinda afastaria
todos os meus cuidados transumantes
e para sempre alegre viveria
os meus dias infantes jĂ¡ distantes

A soluĂ§Ă£o da solidĂ£o compartilhada
onde vejo o meu mais profundo mundo
seria a soluĂ§Ă£o ampla e sem fundo
oposta sem resposta ao meu paĂ­s do nada

Com a voracidade do olvido
seria sĂ³ tu vires e lutares
e por mim de olhos enormes e crepusculares
serias ente querido recebido

Volta com os primeiros anjos de dezembro
num vasto laranjal eu quero amar-te
e entĂ£o a tua vida hĂ¡-de ser a minha arte
e o teu vulto a Ăºnica coisa que relembro

O passado Ă© mentira digo eu
sensĂ­vel ao esplendor do meio-dia
e sob a Ă¡rvore plena da alegria
o mĂ­nimo cuidado esmoreceu

Ao grande peso de tanto passado
com a insĂ³nia da dĂºvida na testa
basta a tua presença que protesta
e todo eu me sinto renovado

Ruy Belo

 in 'Despeço-me da Terra da Alegria'

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