quarta-feira, 13 de setembro de 2023

A morte lixa tudo - António Ferra

 

II

A morte lixa tudo

Aqueles velhos vieram do campo como eu

até encontrarem jardins

ornamentados de galinhas de ovos de ouro

e ali ficam de olhos distraídos pela imbecilidade das pombas

até morrerem para dar espaço a padarias

todas gourmet no paladar, do pão de deus à literatura

o largo fica vazio quando a morte lixa tudo

morte do parlapiê, morte dos jornais, morte dos livros,

resta um eléctrico onde nos roubam a carteira

ainda que pelo chiado eu me desloque a pé

em direcção à calçada do combro

de saco vazio a tiracolo entre casas restauradas e pasteis de nata

a pensar nos velhos, avanço um pouco mais

mexo as pernas de homem do campo,

passo ao lado da rua da emenda,

um subterrâneo vazio,

mas já nada se pode emendar,

não era preciso nada disto, etc,

a morte lixa tudo e apetece-me gritar.

 

ANTÓNIO FERRA

 

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