Prece às Crianças de Gaza
Crianças de Gaza,
De tão longe lhes escrevo
Que quase duvido que me ouçam
Desertos e oceanos me atravessam
Quando nos olhos de minhas filhas, Marias
Avisto as bombas que caem sobre vossas casas
Como pássaros desnorteados possuídos pelo espírito da morte
Quando no choro de minhas filhas, Marias
Ouço o choro assustado que escapa de suas gargantas
Como súplicas de prisioneiros sob as perversões de um carrasco
Que desconhece qualquer limite às suas fantasias de torturador
Crianças de Gaza,
Lhes negam água
Lhes negam abrigo
Lhes negam comida
Mas não podem lhes negar minhas lágrimas
Não podem lhes negar minhas preces
Não podem lhes negar minha poesia
Oceanos e desertos lhes atravessam
E unem os olhos de minhas filhas, Marias, aos seus olhos
Crianças de Gaza,
Algum dia vocês olharão para trás
E verão o horror a ira e a covardia
Destruindo vossas infâncias
Ouvirão o som das bombas e a pulsação das cicatrizes latejando em seus corpos
Vocês nunca deixarão de ser o que são
Nunca poderão esquecer o que estão vivendo agora
Nem o que viveram vossos pais e vossos avós
Crianças de Gaza – Alláh não as abandonará
Nele encontrarão seus indecifráveis oráculos
E os misteriosos labirintos da existência
Nele encontrarão a pedra firme onde ancorar seus íntimos desesperos
Crianças de Gaza,
Sórdidos homens de corações impuros
Mergulham suas infâncias na dor e na amargura
Mas suas almas permanecerão ilesas e intocadas
Na abundância em que crescem minhas filhas, Marias
Saltam como rãs no pântano
As misérias de suas existências
Crianças de Gaza,
Seus pais com armas, fé e angústia descomunal
Tentam lhes devolver a Terra Prometida
Crianças de Gaza,
Suas mães se fazem água para que não morram de sede
Suas mães se fazem pão para que não morram de fome
Suas mães se fazem esperança para que não morram de desgosto
Suas mães se fazem azeite de oliva para que não desconheçam a doçura
Suas mães se fazem tecidos para vestir vosso supremo sofrimento
Crianças de Gaza,
O mundo assiste a tudo e não faz nada
Como um estúpido espectador ante um espetáculo de entretenimento
Somente os seus se fazem escudos para que as bombas não caiam sobre vossas
pequeninas cabeças
Crianças de Gaza,
No sono sereno de minhas filhas, Marias
Avisto os destroços de vossas infâncias
Ouço a indiferença absurda do mundo ante o vosso supremo sofrimento
Crianças de Gaza,
A poesia nada pode ante a realidade e a crueldade e o absurdo do mundo
Crianças de Gaza,
Vosso clamor é o clamor de todos os oprimidos da terra
Alláh nunca as abandonou
Alláh nunca as abandonará
Nas ruínas dos hospitais destruídos pelas bombas
Nas ruínas das escolas destruídas pelas bombas
Nas ruínas dos versos dos grandes poetas palestinos
Nas ruínas das místicas árabes e do sufismo
Nas águas dos desertos e na aridez dos oceanos
Vocês encontrarão a matéria-prima e as reminiscências da Terra Prometida
Vocês encontraram o alimento e o abrigo que lhes negam agora
Crianças palestinas
Lhes negam os peixes do mar
Lhes negam o pão da terra
Lhes negam uma casa onde dormir, sonhar e orar
Lhes negam o sal que dá sabor à existência
Crianças de Gaza,
Mas não podem lhes negar uma língua, uma história e uma tradição poética
Não podem lhes negar a fé nem a dor que sustenta toda fé
E vossa dor ecoa nos olhos serenos de minhas filhas, Marias
Palestinas como todas as Marias do mundo
Palestinas como a Maria que amamentou aquele em quem o Ocidente enxergou o
próprio Deus
Crianças de Gaza,
Sem saber se essas palavras cruzarão os desertos e oceanos que nos separam
Impotente ante a vossa dor e o vosso sofrimento
Só me resta orar e crer
Que o amor e a misericórdia de Alláh
Hão de vencer a ira, a covardia e a maldade que lhes destroça a infância
Só me resta acreditar
Que algum dia essas pedras que hoje lhes servem de armas
Serão a matéria-prima de sua futura Terra Prometida
E os brinquedos da infância de seus filhos, de seus netos e bisnetos
Só me resta rezar para que algum dia possam brincar de roda
No oásis que lhes concederá o destino
Crianças de Gaza,
Vocês serão maiores e melhores algum dia
Pois lhes tocou não ter outra infância senão a da guerra e dos destroços
E saber da mutilação e da perda antes de conhecer o acolhimento e a alegria
Crianças de Gaza,
A paz sem justiça é qualquer coisa menos paz
Que a poesia seja vossa prece
E que a memória da indiferença do mundo os fortaleça
Crianças de Gaza,
Do outro lado do oceano
Do outro lado do deserto
Alláh lhes olha
Alláh lhes alimenta
Alláh sacia vossas sedes
Algum dia vocês serão maiores e melhores
Pois nunca esquecerão o poder destrutivo do ódio e das bombas
Pois nunca esquecerão o silêncio ensurdecedor da indiferença do mundo
Pois nunca esquecerão o choro e ranger de dentes que soa no campo de batalha
Crianças de Gaza,
Recebam minhas lágrimas e estes humildes versos
Que essa injustiça absurda e esse sofrimento supremo
Que esmaga vossas infâncias com a voracidade de um abutre maligno ante uma
presa indefesa
As convertam em guerreiras da Luz e da Sabedoria
E as tornem capazes de vencer as sombras da ignorância
Que não poupam infâncias, oceanos e desertos…
Toróró, 18/10/23
Nuno Gonçalves (Pernambuco, 1977). Nasci em Recife, mas sou cearense.
Publiquei os livros de poesia: Cacos de Cristo, O sol e a maldição, Cartas de
navegação e Calabouço de reticências ou a aridez do oceano. De prosa: O rio das
onças. Recebi o Prêmio Ideal de Literatura com o conto O caminho da novena e
com o poema O canto do anjo vermelho. Graduado em história pela UECE, mestre –
na mesma disciplina – pela UFC & doutor em Estudios Latinoamericanos pela
UNAM. Sou professor de história da América na UFRB, mas o que importa mesmo é
que sou pai de Marialice.
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