terça-feira, 31 de dezembro de 2024

CONTO TRISTE - ADÃO CRUZ

 CONTO TRISTE

– UM BRAMIDO DE RAIVA

poema

Senti um frio arrepiante e um buraco negro nas entranhas, tão fundo como a silhueta daquele maldito comboio da inglória velocidade rebentando a dor, direito à morte que está em pé na berma do cais pela mão de uma criança. O pai, nos braços de um escombro deste mundo sem sol nem lua, destino bárbaro e cruel da perda total, de mão dada com o filho contra a majestade de um gélido cadafalso de ferro, parido pela força de um desumano progresso, contra o qual se esmagam os pobres e desamparados que vivem em contramão.

Meu menino sonâmbulo de olhos negros e pálida doçura quase luminosa, firme, terna, inocente, confiante na verdade desfeita em sangue pela mentira das mãos fatalistas de uma sociedade podre.

Podia ser um menino nascido no berço do lado, ao colo de um pai ou de um avô trabalhador-milionário, desiludido, porque a sua fortuna não havia atingido o limiar do absurdo, o que não deixava de ser triste, mas a vida filha da puta, meu menino pobre, nada mais te deu do que um pai sem nada, sem prendas sem força nem entre-actos que te enxergassem melhor sorte do que a morte.

O monstruoso comboio entra na tua boca a toda a brida, o ar louco sai em turbilhão do teu pequenino peito sem eco, a vida estilhaça-se em ruidoso estrondo e o teu corpo frágil cai em pedaços sobre os bonecos das tuas meias, no pavoroso silêncio dos teus olhitos redondos.

E o mundo continua como se nada tivesse acontecido.

Quando vi que eras tu o menino que estava no curto caminho da morte pela mão de um pai que não dominava a fome, e não tinha dinheiro para te comprar uma bola, um pai que não sorria nem cantava para ti porque a alma se perdeu na praça do medo com o sol congelado na boca, senti um bramido de raiva e uma louca vontade de pedir contas a Deus.

 ADÃO CRUZ

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Ano Novo - Ferreira Gullar

Ano Novo 

Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)

Ferreira Gullar

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Tenta louvar o mundo mutilado - Adam Zagajewski

Tenta louvar o mundo mutilado

Tenta louvar o mundo mutilado.
Recorda os longos dias de Junho
e os morangos silvestres, as gotas de vinho rosé.
As urtigas que cobrem metodicamente
as herdades abandonadas dos exilados.
Tens de louvar o mundo mutilado.
Observaste os iates elegantes e os navios;
um tinha uma longa viagem pela frente,
ao outro esperava-o apenas o nada salgado.
Viste os refugiados que caminhavam para lugar nenhum,
ouviste os carrascos que cantavam com alegria.
Deves louvar o mundo mutilado.
Recorda os momentos em que estiveram juntos
no quarto branco, as cortinas movendo-se.
Volta em pensamento ao concerto, quando a música eclodiu.
No Outono colheste bolotas no parque
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louva o mundo mutilado
e a pena cinzenta, perdida pelo tordo,
e a luz delicada, que erra e desaparece
regressa.

Adam Zagajewski

Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk

Try to Praise the Mutilated World

Try to praise the mutilated world.
Remember June’s long days,
and wild strawberries, drops of rosé wine.
The nettles that methodically overgrow
the abandoned homesteads of exiles.
You must praise the mutilated world.
You watched the stylish yachts and ships;
one of them had a long trip ahead of it,
while salty oblivion awaited others.
You’ve seen the refugees going nowhere,
you’ve heard the executioners sing joyfully.
You should praise the mutilated world.
Remember the moments when we were together
in a white room and the curtain fluttered.
Return in thought to the concert where music flared.
You gathered acorns in the park in autumn
and leaves eddied over the earth’s scars.
Praise the mutilated world
and the gray feather a thrush lost,
and the gentle light that strays and vanishes
and returns

 

domingo, 22 de dezembro de 2024

Litania para o Natal de 1967 - David Mourão-Ferreira

Litania para o Natal de 1967

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo

David Mourão-Ferreira

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A paz sem vencedor e sem vencidos - Sophia de Mello Breyner Andresen

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos, Senhor, a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Às pessoas comuns - Luís Neves

 

(desenho de Fernando Campos)

Dedico este livro às pessoas comuns

 

As pessoas são comuns quando já não querem ser outras.

As pessoas comuns só querem que não as chateiem e mais nada.

As pessoas comuns não esperam a esperança.

 

Ela espera sempre e nunca é esperada,

Ela faz-se adulta mas é sempre criança,

Ela é maior mas é sempre pequena,

Ela é amante antes de ser amada,

Ela é oficial e age como ordenança,

Ela é profissional e pagam-lhe como amadora,

Ela é mestre e ouve como discente,

Ela é doutora e tratam-na como paciente,

Ela é mãe sem deixar de ser filha.

 

Ele nunca é observador é sempre observado,

Ele nunca é escritor é sempre leitor,

Ele é o ator que atua na plateia.

 

Ele queria ser flor e foi sempre mato,

Ele queria ser poema e não passou de letra,

Ele não conseguiu ser fadista nem letra de fado,

Ele queria ser marinheiro e foi faroleiro,

Ele queria ser pastor e foi sempre ovelha,

Ele queria ser dono e foi sempre um animal,

Ele queria ser agricultor mas limitou-se a comer,

Ele nunca tratou da vinha e não lhe faltou de beber,

Ele queria ser eleito e foi sempre eleitor,

Ele queria um mundo melhor mas…

Ele queria ser outro e foi ele mesmo,

Ele queria ser rico e foi sempre pobre,

Ele queria ser história e só teve nome,

Ele queria ser herói e é

Ao meu herói:

O homem comum

Ele foi sempre limpo e não passou de porco,

Ele queria ser lúcido e foi sempre louco,

Ele queria ser muito e foi sempre pouco,

Ele sonhava o futuro e só teve o presente,

Ele queria viver para sempre e morreu,

Comumente

 

- Que é isso de vencer na vida, ó vós incomuns!?

 

Luis Neves

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Nikki Giovanni - Meu poema

Meu poema

eu tenho 25 anos
mulher negra poeta
escrevi um poema perguntando
preto você pode matar?
se eles me matarem
isso não vai parar
a revolução

eu fui roubada
me parece que eles sabiam
que eu ia ser atingida
eles levaram minha tv
meus dois anéis
minha pintura africana
e minhas duas armas
se eles tirarem minha vida
isso não vai parar
a revolução

meu telefone está grampeado
meu e-mail está aberto
eles me colocaram contra
todas as minhas velhas amizades
e contra todos os meus novos amantes
se eu odiar todas as pessoas negras
e todos os pretos,
isso não vai parar
a revolução

eu tenho medo de dizer
pra minha colega de quarto pra onde eu estou indo
e pavor de dizer
pras pessoas se eu vou mesmo
se eu me sentar aqui
pro resto
da minha vida
isso não vai parar a revolução

se eu nunca mais escrever nenhum poema
ou conto
se eu reprovar
a graduação
se meu carro for apreendido
e meu toca-discos
não tocar
e se eu nunca vir
um dia de paz
ou tiver uma atitude preta significativa
isso não vai parar
a revolução

a revolução
está nas ruas
e se eu ficar
no 5º andar
ela vai continuar
se eu nunca fizer
nada
ela vai continuar

Nikki Giovanni

My poem

i am 25 years old
black female poet
wrote a poem asking
nigger can you kill
if they kill me
it won’t stop
the revolution

i have been robbed
it looked like they knew
that I was to be hit
they took my tv
my two rings
my piece of african print
and my two guns
if they take my life
it won’t stop
the revolution

my phone is tapped
my mail is opened
they’ve caused me to turn
on all my old friends
and all my new lovers
if i hate all black people
and all negroes
it won’t stop the revolution

i’m afraid to tell
my roommate where I’m going
and scared to tell
people if I’m coming
if i sit here
for the rest
of my life
it won’t stop
the revolution

if i never write
another poem
or short story
if i flunk out
of grad school
if my car is reclaimed
and my record player
won’t play
and if i never see
a peaceful day
or do a meaningful
black thing
it won’t stop
the revolution

the revolution
is in the streets
and if i stay on
the 5th floor
it will go on
if i never do
anything
it will go on

Publicado no livro Black Judgement (1968)
(Fonte: The Collected poetry of Nikki Giovanni 1968-1998, p. 86-87)

domingo, 15 de dezembro de 2024

AS TRÊS IRMÃS - Manuel Begonha

AS TRÊS IRMÃS

AMIGO

Aquele que te ajuda a dizer não, quando o mais fácil é dizer sim
Aquele que te empresta o último dinheiro que tem no banco
Aquele que te abraça quando choras.
Aquele que te defende quando te vilipendiam

COMPANHEIRO

Aquele que entende as tuas utopias
Aquele que sobe contigo a montanha mais alta
Aquele que vai a teu lado e sabe estar calado

CAMARADA

Aquele que vai contigo defender a Pátria
Aquele que segue o teu caminho para um mundo novo
Aquele que detém a bala para te salvar a vida

Manuel Begonha 

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

OS POBREZINHOS - Armindo Mendes Carvalho (dito por Mário Viegas)

 

Ouvir aqui»»» Mário Viegas  Armindo Mendes Carvalho

OS POBREZINHOS

 

Os pobrezinhos

tão engraçados

pedem esmolinha

com mil cuidados

 

Todos sujinhos

e tão magrinhos

a linda graça

dos pobrezinhos

 

De porta em porta

sempre rotinhos

tão delicados

os pobrezinhos

 

Não façam mal

aos pobrezinhos

dêem-lhes pão

e tostõezinhos

 

Os pobrezinhos

tão engraçados

pedem esmolinha

com mil cuidados

 

Armindo Mendes Carvalho

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

HISTÓRIA ANTIGA (1937) - Miguel Torga

 

HISTÓRIA ANTIGA (1937)

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.


Miguel Torga