sexta-feira, 20 de junho de 2025

Geografia da areia - Antonio Gamoneda

 

Geografia da areia

O mapa de coral repousa

esperando o retorno da onda

assim, o Desperto,

sereno retorna

ao mar da Consciência Pura.

Antonio Gamoneda

 

Geografía de arena

El mapa de coral descansa

esperando el retorno de la ola

así, el Despierto,

sereno retorna

al mar de la Conciencia Pura.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Cantam ao longe - Carlos Queirós Ribeiro

 

Cantam ao longe

Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a natureza parece
Dizer em voz comovida,
Que o homem não a merece.

 

Carlos Queiróz Ribeiro

sábado, 14 de junho de 2025

O medo e a esperança - Fernando Couto

 

O medo e a esperança

 

Tranquilo e devagar entro na aldeia

de mão ao alto aberta em sinal de paz

Desertas e contudo palpitantes

se encontram ainda as palhotas 

 

No único rosto presente é visível

o medo está atento procurando antecipar-se

nos meandros da incómoda adivinha

 

Falo e sorrio e entreteço pontes de caniço

e não sei estendê-las até à outra margem:

fechado e atento o rosto em frente do meu

entremeia um rio sem vau e sem barcos

de águas opacas e demasiado largo

 

Procuro na memória de distantes avós

autênticos e críveis sinais de paz

e ao fazê-lo acordo aves de lembranças

de ventres pejados de sangue e ódios

e apenas avivo o rosto em frente as cores do medo

 

Olho o meu braço estendido e nu

inofensivo e pronto à espera do acolhimento

e no rosto em frente projecta-se uma sombra

a dolorosa sombra-lembrança de um chicote

E o medo ganha relevo no rosto escuro

atento e vigilante à porta da palhota:

 

pergunto aos teus olhos e às tuas costas

à tua carne e ao abismo dos teus olhos

onde e quando brotou a fonte desse medo

— como se eu fosse o deus vivo do raio

e fizesse empalidecer o teu rosto cor de noite

a ti que nunca me viste e contudo és valente

e já viste de perto a fome de feras em liberdade

 

Quero perguntar de frente aos teus olhos

e a tua cabeça pende como um ramo

ameaçado de morte com o peso dos frutos

prestes a perderem-se inúteis em chão batido

Quero perguntar-te e não sei os gestos

nem as palavras mágicas ou compreensíveis

para conjurar a mancha de medo

que ensombra o teu rosto esculpido em negro

 

Não sei os gestos e as palavras mágicas

e todavia não desisto e procuro

certo de haver uma ponte praticável

entre os meus e os teus olhos erguidos.

 Fernando Couto

- Fernando Couto, em "Rumor de água" (antologia poética).. [Organização Ana Mafalda Leite]. Maputo: Editorial Ndjira, 2007.

 


quinta-feira, 12 de junho de 2025

O MUNDO NOVO - José Augusto Aires Torres

 

O MUNDO NOVO

 

O mundo que aí vem...

É o que a gente imagina! E o que se espera!

E a pena que se tem

De já não sermos nós a ver a nova era!

Afinal, sem razão, pensando bem:

Se o mundo é sempre novo em cada hora,

E se, nos anos todos que se contem,

Não deve haver dois dias iguais,

Bem podemos, sem pena ir embora...

Que, amanhã, como hoje, como ontem,

Sempre se há-de nascer cedo de mais.

José Augusto Aires Torres

Aires Torres, in Jornal de Felgueiras, n.º 2450, 8 de Agosto de 1959.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Há guerras que se perdem - Jesús López Pacheco

 

Há guerras que se perdem

 

“Há guerras que se perdem mas nunca estão perdidas.

Sob a paz, imposta pela guerra,

o povo cala, espera e não se esquece.

Há mortos que não morreram, ideias sempre vivas.

Escrevo-te, Rafael, para dizer

que tudo está acontecendo, entretanto.”

Jesús López Pacheco

 

Hay guerras que se pierden

 

“Hay guerras que se pierden y nunca están perdidas.

Bajo la paz, impuesta por la guerra,

el pueblo calla, espera y no se olvida.

Hay muertos que no han muerto, ideas siempre vivas.

Te escribo, Rafael, para decirte

que está ocurriendo todo, todavía.”

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Escola da ONU, Jabalia, Gaza - João Pedro Mésseder

 

Escola da ONU, Jabalia, Gaza

 

Sangue nas paredes,

sangue no chão,

sangue nos quadros, nas mesas, nos placards,

sangue nos livros, nos cadernos, nos brinquedos.

 

Durante o sono?

Depois do sono?

 

O alfabeto do sangue,

a subtração do sangue,

a soma do sangue,

a multiplicação do sangue.

 

Não houve divisão,

era todo

sangue palestino.

 

João Pedro Mésseder

(A quem pertence a linha do horizonte) 30-07 2014

 

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

“Sonho americano” - Jesús López Pacheco

 


“Sonho americano”

... sí che la tema si volve in disio.

Dante, Inferno, III, 126

No inferno dos consumidores

os condenados vivem no paraíso triste

da falsa abundância fugitiva.

Envoltos numa neblina de desejos

insatisfeitos, mas sempre renovados.

São livres de comprar vendendo a alma

e, escravos de suas pobres propriedades nunca suas,

não fazem a digestão jamais sem hipoteca.

O crânio lhes perfura, gota a gota,

uma secreta admiração pelos canalhas.

E todos são de todos a cada dia

corretos inimigos sorridentes

que nas primeiras páginas e nos écrans bebem

lentamente o desprezo por si mesmos,

uma desconfiança doentia da vida

e o sonho sujo de viver sem ser humanos.

Jesús López Pacheco

“Sueño americano”

... sí che la tema si volve in disio.

Dante, Inferno, III, 126

En el alegre infierno de los consumidores

los condenados viven en el paraíso triste

de la falsa abundancia fugitiva.

Los envuelve una bruma de deseos

insatisfechos, pero renovados siempre.

Son libres de comprar vendiendo el alma

y, esclavos de sus pobres propiedades nunca suyas,

no hacen la digestión jamás sin hipoteca.

El cráneo les horada, gota a gota,

una secreta admiración por los canallas.

Y todos son de todos cada día

correctos enemigos sonrientes

que en las primeras páginas y en las pantallas beben

lentamente el desprecio por sí mismos,

una desconfianza enferma de la vida

y el sueño sucio de vivir sin ser humanos.

Jesús López Pacheco


domingo, 1 de junho de 2025

Sonambulismo - Joaquim Namorado

 

Sonambulismo

Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!...
Sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.

Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!

Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!

Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente


Joaquim Namorado

in 'Agora'

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Efraín Huerta - Hoje assinei a Paz.

 

Hoje assinei a Paz

Sob as altas árvores da Alameda

e uma jovem com olhos de esperança.

Junto com ela, outras jovens pediram mais assinaturas

e aquela hora foi como uma pátria iluminada

do amor ao amor, da graça pela graça,

de uma luz para outra luz.

Hoje assinei a Paz.

E comigo, em cem países, cem milhões de assinaturas,

cem orquestras do mundo, uma sinfonia universal,

uma única canção pela Paz no mundo.

Hoje não assinei o poema nem os pequenos artigos,

nem o documento que te escraviza,

Eu não assinei a carta que não sente

nem a mensagem que durará um segundo.

Hoje assinei a Paz.

Para que o tempo não pare,

para que o sonho não imobilize,

para que o sorriso seja alto e claro,

para que uma mulher aprenda a ver seu filho crescer

e os alunos do filho veem como sua mãe fica cada dia mais jovem.

Hoje dei uma assinatura, minha, pela Paz.

Um mar de assinaturas que afogam e atordoam

ao industrial e ao político da guerra.

Uma onda gigantesca de assinaturas gigantescas:

o tremor da criança que mal balbucia a palavra,

que é uma rosa das lágrimas da mãe,

a assinatura da humildade – a assinatura do poeta.

Hoje aumentei em um o número mundial de assinaturas pela Paz.

E estou feliz como um adolescente apaixonado,

como uma árvore em pé,

como a primavera inesgotável

e como o rio com seu canto de cristais soberbos.

Hoje parece que não fiz nada

e ainda assim, dei a minha assinatura pela Paz.

A jovem sorriu para mim e em seus lábios havia uma pomba viva,

e ele me agradeceu com seus olhos de esperança

e continuei meu caminho em busca de um livro para meus filhos.

Bem, lá estava a minha assinatura, precisa e clara,

ao pé do Apelo de Berlim.

Parece que não fiz nada

e ainda assim, acredito que multipliquei minha vida

e multiplicou os desejos mais saudáveis.

Hoje assinei a Paz.

Autógrafo

Archivo:Efraín Huerta (firma).svg - Wikipedia, la enciclopedia libre

Efraín Huerta

 

Hoy he dado mi firma para la Paz

Hoy he dado mi firma para la Paz.
Bajo los altos árboles de la Alameda
y a una joven con ojos de esperanza.
Junto a ella otras jóvenes pedían más firmas
y aquella hora fue como una encendida patria
de amor al amor, de gracia por la gracia,
de una luz a otra luz.
Hoy he dado mi firma para la Paz.
Y conmigo, en cien países, cien millones de firmas,
cien orquestas del mundo, una sinfonía universal,
un solo canto por la Paz en el mundo.
Hoy no he firmado el poema ni los pequeños artículos,
ni el documento que te esclaviza,
no he firmado la carta que no siente
ni el mensaje que durará un segundo.
Hoy he dado mi firma para la Paz.
Para que el tiempo no se detenga,
para que el sueño no se inmovilice,
para que la sonrisa sea alta y clara,
para que una mujer aprenda a ver crecer a su hijo
y las pupilas del hijo vean cómo su madre es cada día más joven.
Hoy he dado una firma, la mía, para la Paz.
Un mar de firmas que ahogan y aturden
al industrial y al político de la guerra.
Una gigantesca oleada de gigantescas firmas:
la temblorosa del niño que apenas balbucea la palabra,
la que es una rosa de llanto de la madre,
la firma de humildad —la firma del poeta.
Hoy he elevado en una el número mundial de firmas por la Paz.
Y estoy contento como un adolescente enamorado,
como un árbol de pie,
como el inagotable manantial
y como el río con su canción de soberbios cristales.
Hoy parece que no he hecho nada
y sin embargo, he dado mi firma para la Paz.
La joven me sonrió y en sus labios había una paloma viva,
y me dio las gracias con sus ojos de esperanza
y yo seguí mi camino en busca de un libro para mis hijos.
Pues ahí estaba mi firma, precisa y diáfana,
al pie del Llamamiento de Berlín.
Parece que no he hecho nada
y sin embargo, creo haber multiplicado mi vida
y multiplicado los más sanos deseos.
Hoy he dado mi firma para la Paz.

 

domingo, 25 de maio de 2025

1º. MAIO - FERNANDO PEIXOTO.

 

1º. MAIO

 

Há Maio em cada rosto

em cada olhar

que passa pelo asfalto da Avenida

Há Maio em cada braço

que se ergue

há Maio em cada corpo em cada vida

 

Há Maio em cada voz

que se levanta

há Maio em cada punho que se estende

há Maio em cada passo

que se anda

há Maio em cada cravo que se vende

 

Há Maio em cada verso

que se canta

há Maio em cada uma das canções

há Maio que se sente

e contagia

no sorriso feliz das multidões

 

Há Maio nas bandeiras

que flutuam

e mancham de vermelho

o céu de anil

Há Maio de certeza

em cada peito

que sabe respirar o ar de Abril

 

Mas há Maio sobretudo

no poema

que se escreve sem ler o dicionário

porque Maio há-de ser

mais do que um grito

porque Maio é ainda necessário

 

Canto Maio e se canto

logo existo

que o meu canto de Maio é solidário

com o canto que escuto

e em que medito

e que sai da boca do operário

 

 FERNANDO PEIXOTO.

Um abraço, Fernando, e obrigado pelo teu poema.
Amanhã por lá estarei a recordar como foi belo aquele primeiro 1º de Maio em que uma onda maciça de pessoas inundou a Praça General Humberto Delgado, a Avenida dos Aliados e a Praça da Liberdade, no Porto. E gritamos bem alto LIBERDADE, VIVA O PRIMEIRO DE MAIO, FASCISMO NUNCA MAIS, 25 de ABRIL, SEMPRE...

Façamos deste Maio um grito de Liberdade!
José Gomes

sexta-feira, 23 de maio de 2025

O povo - Miquel Martí i Pol

 

O povo

 

O povo é um velho teimoso,

é uma menina sem namorado,

é um pequeno comerciante em descrédito,

é um parente com quem brigamos há muito tempo.

 

O povo é uma abafada tarde de verão

é um castelo sobre a areia

é a chuva fina de novembro.

 

O povo é quarenta anos a subir andaimes,

é a breve ansiedade do domingo à tarde,

é a família como base da sociedade futura,

é o conjunto de seus habitantes, etc., etc.

 

O povo é o meu esforço e o vosso esforço,

é minha voz e vossa voz,

é a minha pequena morte e a vossa pequena morte.

O povo é conjunto do nosso esforço

e da nossa voz

e da nossa pequena morte.

O povo és tu e tu e tu

e todas a gente que não conheces,

e os teus segredos

e os segredos dos outros.

O povo são todos,

o povo não é ninguém,

O povo é tudo:

o princípio e o fim,

o amor e ódio,

a voz e o silêncio,

vida e a morte.

Miquel Martí i Pol

De ' O Povo' Versão de Adolfo García Ortega

 

El pueblo

El pueblo es un viejo tozudo,
es una muchacha sin novio,
es un pequeño comerciante en descrédito,
es un pariente con quien reñirnos hace mucho tiempo.

El pueblo es una bochornosa tarde de verano,
es un castillo sobre la arena,
es la lluvia fina de noviembre.

El pueblo es cuarenta años de subirse a los andamios,
es la breve ansiedad del domingo por la tarde,
es la familia como base de la sociedad futura,
es el conjunto de sus habitantes, etc., etc.

El pueblo es mi esfuerzo y vuestro esfuerzo,
es mi voz y vuestra voz,
es mi pequeña muerte y vuestra pequeña muerte.
El pueblo es el conjunto de nuestro esfuerzo
y de nuestra voz
y de nuestra pequeña muerte.
El pueblo eres tú y tú y tú
y toda la gente que no conoces,
y tus secretos
y los secretos de los otros.
El pueblo es todos,
el pueblo es nadie,
El pueblo es todo:
el principio y el fin,
el amor y el odio,
la voz y el silencio,
la vida y la muerte.

De "El pueblo"
Versión de Adolfo García Ortega

 

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Este homem que esperou - António Ramos Rosa

 

Este homem que esperou

Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra duma árvore
mudar a direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

António Ramos Rosa

 


terça-feira, 13 de maio de 2025

Senso comum - William Eaton

 

Senso comum*

 

Ela não lhe ocorria que ele era

Um socialista

E ele - embora pudesse - não tinha carro

Nunca apanhava um táxi

Havia tantas coisas que

Ele não entendia

Era a necessidade reduzir os impostos e os encargos laborais

Eliminar toda a regulamentação ambiental que fazia mais mal que bem

Em que realmente acreditava?

Ele nunca tinha assistido a um podcast!

Antes que ele a despisse

Ela fê-lo apagar a luz.

 

William Eaton

*O título em inglês "Common sense" - a sensação que tenho, é que para a classe comercial americana, esta frase se tornou uma frase de código. Pode traduzir-se: quero pagar menos impostos e salários mais baixos e não ter a atividade financeira prejudicada por qualquer necessidade de proteger o ambiente ou a saúde humana.

English

Common sense

She couldn’t get over that he was

A socialist

And he – although he could afford one – he had no car

Never took a taxi

There were so many things

He didn’t understand

The need to cut taxes and the ever-rising cost of labor

The need to eliminate all the environmental regulations that did more harm than good

What did he really believe in?

He’d never watched a podcast!

Before he took her clothes off

She made him turn off the lights.

Français

Du bon sens

Elle n’en revenait pas qu’il était

Socialiste

Il avait les moyens d’en acheter une, mais il était sans voiture

Ne prenait jamais de taxi

Il y avait tant de choses que lui

Il ne comprenait pas

Qu’il fallait réduire des impôts et les charges patronales

Éliminer toutes les réglementations environnementales qui faisaient plus de mal que de bien

En quoi croyait-il vraiment ?

Il n’avait jamais regardé un podcast !

Avant qu’il ne la déshabille

Elle l’a obligé à éteindre la lumière.

Español

¿Un poco de sentido común?

Ella no podía superar que era

socialista

Aunque podía permitirse uno, no tenía coche

Nunca cogía taxis

Había tantas cosas que él

No entendía

Que había que reducir los impuestos y el coste laboral

Eliminar todas las normativas medioambientales que hacían más mal que bien

¿En qué creía él realmente?

¡Nunca había visto un podcast!

Antes de que él la desnudara

Ella le hizo apagar las luces.


— Poem(s) and photograph by 
William Eaton