segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

O Evangelho segundo o poeta - Fernando Peixoto


Morre o ator Fernando Peixoto, aos 74 anos - OFuxico

O Evangelho segundo o poeta’

De ti pouco mais sei do que o que li
E apenas pelo que outros me disseram
Mas nunca te escutei, sequer te vi
Nos livros que os antigos escreveram.

E de tudo o que retive e que aprendi
Recordo alguns prodígios que fizeste.
Mas depois, reflectindo, concluí:
Quem foste afinal, Tu? E o que disseste?

Nenhum dos escritores te conheceu,
Nenhum deles jamais te acompanhou.
Nem ao certo se sabe onde nasceu
O Jesus que até hoje a nós chegou.

Por isso é que aprendi a duvidar
E daquilo que li pouco me importa.
Duvidando aprendi a acreditar
Porque ter Fé, sem dúvida, é Fé morta.

Que fizeste, tu, Amigo? Francamente!
Como pudeste cair em tanta asneira?
Tu, que tiveste o mundo à tua frente
E o deixaste cair desta maneira?

Tu, que divino sempre te julgaste
E como filho de Deus te assumiste,
Tu, que a própria família abandonaste
E os míseros aos ricos preferiste,

Que surgiste, já homem, sem sabermos
Que fizeste na tua adolescência,
Que caminhos tomaste, sem te vermos,
Onde colheste tu tanta ciência?

Depois permaneceste errando, incerto,
Meditando em contínua oração,
Preparando, sozinho, no deserto
O caminho da tua pregação.

Partiste rumo ao mar para pescar
Com redes de palavras pescadores
Acolheste-os a todos, sem cuidar
Em separar os bons dos pecadores.

Quem eras Tu, que assim se aventurava
Em abalar um mundo instituído?
Quem eras tu, Jesus, que assim falava
De um Novo Deus de amor, desconhecido?

Quem eras tu, surgido de repente
Um pobre, natural de Nazaret,
Acompanhado assim, por tanta gente,
Pregando às multidões a nova Fé?

Que o Velho Testamento transformaste
Num novo Deus, sem fúria nem vingança,
Um novo Deus de Amor, que proclamaste,
Num Novo Testamento de esperança,

Tu, que amaste as crianças com ternura,
Como eternos símbolos de pureza,
Que trilhaste os caminhos da ventura
E foste dos humanos frágil presa,

Que a fome por milagre mitigaste
Em pão que se espalhou com abundância,
Que mesmo aos inimigos abraçaste
Com idêntico amor e tolerância,

Que à mulher conferiste a dignidade
Tornando-a tua amiga e tua irmã,
Pois do seu ventre emerge a humanidade
Que faz de cada parto uma manhã,

Que morreste sozinho, abandonado
Pelo povo que foi o teu algoz,
Exangue e por espinhos cravejado
Suportando na cruz a dor atroz

Questionaste o Pai sobre a razão
De ter-te abandonado nesse instante.
E qual foi a resposta? Um trovão,
Apenas um trovão no céu distante.

Disseram que depois ressuscitaste!
Embora já de forma não terrena,
E que aos olhos daquela a quem amaste
Te mostraste primeiro: Madalena.

Mas não creio que tal seja verdade.
E tudo não passou duma visão
Daquela, para quem a realidade
Eras Tu, inda vivo: uma ilusão.

Eras tu, Jesus, o Deus que amava,
Eras tu, Jesus, a flor eterna,
A pétala da flor que não murchava
No amoroso jardim de Madalena.

E por isso te via a todo o instante
E nunca se sentia em solidão
Porque tinha guardado o seu amante
No cofre mais secreto da paixão.

Para mim nunca foste a divindade,
Aquela que não passa dum conceito,
Foste um Homem apenas, na verdade,
Foste um Homem, apenas, mas PERFEITO.

E se hoje creio em ti desta maneira
Acredita: não é por má vontade.
É por não ver a Humanidade inteira
Seguir o teu exemplo de bondade.

Morreste torturado numa cruz
Às mãos dos que querias libertar.
Mas p’ra mim tu és sempre esse Jesus
Que eu tanto gostaria de imitar!

Mas tão débil eu sou que não consigo
Ultrapassar os vícios que consomem
O difícil caminho que prossigo
À procura de ti, p’ra ser um Homem.

Por isso sinto a dor tão pertinaz
De tão perto estar de ti e tão distante,
sentir-me cada vez mais incapaz
de ser igual a ti, ou semelhante.

A minha cruz é de outra natureza
E nada tem em si de misticismo:
É a pesada cruz desta fraqueza
De não poder vencer o meu egoísmo.

E só pensando em ti me tornarei
Capaz de resistir e ser mais forte
Vencendo este percurso que encetei
No dia em que nasci até à morte.

Porque a Vida, Jesus, é mesmo assim,
Um rumo que se traça e se percorre,
Que tem sempre um começo e tem um fim:
Se tudo nasce e vive, tudo morre.

E se de nada mais tenho a certeza,
Pretendo ter ao menos a ambição
De estar conforme a minha natureza
Desta frágil e humana condição.

Do Bem e da Pureza soberano
Foste o fruto de humana concepção.
Eu apenas serei um ser humano
Incapaz de atingir a perfeição.

Se como tu não passo de um mortal
E assumo por inteiro este conceito,
Eu não sou como tu, sou desigual,
Não sou como tu foste: um ser perfeito.

E por isso te quero e te encareço
E por isso te recordo e me ajoelho
Em tributo fraterno. E reconheço
Nos teus humanos actos o Evangelho.

Fernando Peixoto


sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Os advogados do Dólar - Pablo Neruda


Os advogados do Dólar

 

Inferno americano, pão nosso

empapado em veneno, há outra

língua em tua pérfida fogueira:

é o advogado nativo

da companhia estrangeira.

É ele que arrebita os grilhões  

da escravidão em sua pátria,

e passeia desdenhoso

com a casta dos gerentes

a mirar com ar supremo

nossas bandeiras andrajosas.

 

Quando chegam de Nova York

as vanguardas imperiais,

engenheiros, calculistas,

agrimensores, peritos,

e medem terra conquistada,

estanho, petróleo, bananas,

nitrato, cobre, manganês,

açúcar, ferro, borracha, terra,

adianta-se um anão obscuro,

com um sorriso amarelo,

e aconselha com suavidade

aos invasores recentes:

 

Não é preciso pagar tanto

a estes nativos, seria

um crime, meus senhores, elevar

estes salários. Não convém.

Estes pobres-diabos, estes mestiços,

iriam só embriagar-se

com tanto dinheiro. Pelo amor de Deus!

São uns primitivos, quase

umas feras, conheço esta cambada.

Não paguem tanto dinheiro.

 

É adotado. Põem-lhe

libré. Veste como gringo,

cospe como gringo. Dança

como gringo, e vai subindo.

Tem automóvel, uísque, imprensa,

é eleito juiz e deputado,

é condecorado, é ministro,

e é ouvido no Governo. 

Sabe ele quem é subornável.

Sabe ele quem é subornado.

Ele lambe, unta, condecora,

afaga, sorri, ameaça.

E assim se esvaziam pelos portos

as repúblicas dessangradas.

 

Onde mora, perguntareis,

este vírus, este advogado,

este fermento do detrito,

este duro piolho sanguíneo,

engordado de nosso sangue?

Mora nas baixas regiões

equatoriais, o Brasil,

mas sua morada é também

o cinturão central da América.

Podereis encontrá-lo na escarpada

altura de Chuquicamata.

Onde cheira riqueza sobe

os montes, cruza abismos,

com as receitas de seu código

para roubar a terra nossa.

 

Podereis achá-lo em Puerto Limón,

na Ciudad Trujillo, em Iquique,

em Caracas, Maracaibo,

em Antofagasta, em Honduras,

encarcerando nosso irmão,

acusando seu compatriota,

despedindo peões, abrindo

portas de juízes e abastados,

comprando imprensa, dirigindo

a polícia, o pau, o rifle

contra sua família esquecida.

 

Pavoneando-se, vestido

de smoking, nas receções, 

inaugurando monumentos,

com esta frase: Meus senhores,

a pátria, antes da vida,

é a nossa mãe, é o nosso chão,

vamos defender a ordena fazendo

novos presídios, novos cárceres.

 

E morre glorioso, “o patriota”,

senador, patrício, eminente,

condecorado pelo papa,

ilustre, próspero, temido,

enquanto a trágica ralé

de nossos mortos, os que fundiram

a mão no cobre, arranharam

a terra profunda e severa,

morrem batidos e esquecidos,

postos às pressas

em seus caixões funerários:

um nome, um número na cruz

que o vento sacode, matando

até a cifra dos heróis.

 

Pablo Neruda

                                       


quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

A GREVE - Júlio Saraiva

 Uma imagem com texto, póster, design gráfico, vestuário

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A GREVE

(em solidariedade às companheiras e companheiros em greve)

a greve
é grave

a greve não teme
a chuva
e nem teme
que o trabalhador morra a fome

a fome é porca
e o trabalhador usa o pouco
que lhe resta
para cruzar os braços e parar


a greve pode - e deve - parar

Júlio Saraiva

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A GREVE DOS POETAS - Marcelino Freire

 

A GREVE DOS POETAS

Poetas em greve, sim.
Agora e já!

Por que não?

Não entraram os bancários?
Os ferroviários?
Os servidores do Estado?

É legítima nossa reivindicação.

Não viu, no Brasil?

Todo trabalhador
de braço cruzado.

Investigador e escrivão.
Coveiros sem enterros.
Policiais no Maranhão.

Poetas, avante, à luta,
é hora de união.

De coração parado,
em silêncio,
tomemos a multidão.

Mostremos que somos
uma categoria.

A cidade sem palavras,
nada de saraus na periferia.

A população pedirá
urgentemente
a nossa volta ao trabalho.

Tenho certeza,
bem sei.

Quem quer ver a poesia assim,
para sempre,
morta de uma vez?

Marcelino Freire

 

 

GREVE - Nivaldo Vanderlei Balla

GREVE
Uma imagem com texto, design gráfico, Gráficos, encarnado

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Greve é um mal necessário
Glória para os protagonistas
Muitas vezes efêmeras
E outras duradouras.
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Dos louros todos aproveitam
Os coadjuvantes são de aparecer
Quando tudo está terminado
Ao fitá-los ficam com cara de tacho.
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Esse é um momento diferenciado
O retrato com forma de derrota
Não olhe para a greve como brincadeira
Não se torne o rato que dá viva à ratoeira.
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Sinta alegria pela luta na tentativa
Não apenas pela vitória e consequência
De um movimento de classe organizada
Sempre lutar com determinação.
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Se perder, perca com classe
Caso venha a vitória, que seja com ousadia
O mundo só existe para quem se atreve
Já afirmei: vitória é apenas consequência.
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Escrevi algumas linhas nessa poesia
Sobre as indignações do dia a dia
De uma luta desigual onde somos servidores
Lutando contra os ditadores da democracia.
Uma imagem com texto, design gráfico, Gráficos, encarnado

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É uma forma que consigo gritar em silêncio
Será que um dia alguém terá ouvidos para mim.

Nivaldo Vanderlei Balla

 

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

PALAVRA GREVE - Oswald Barroso

PALAVRA GREVE

 

Com gê

com vê se escreve

a palavra greve

 

com gê de guerra

com vê de vida

 

a palavra é lida

a palavra é livre

a palavra é breve.

 

A dizê-la

quem se atreve?

Quem bate

a boca atrevida?

 

Com lê

com dê se escreve

a palavra lida

 

com lê de luta

com dê de dia

 

a palavra é dita

a palavra é dura.

 

O seu peso

quem atura?

Quem se mata

sob a treva?

 

Com gê

com pê se escreve

a palavra paro

 

com gê de greve

com pê de pedra

 

a palavra é porta

a palavra é posta

a palavra é pista.

 

A fazê-lo

quem se arrisca?

Quem ousa

estancar a fábrica?

 

— Quem a move.

 

Quem ousa

parar a cidade?

 

— Quem a move.

 

Quem ousa

mudar o mundo?

 

— Quem o move

 

Com ê

com rê se escreve

a palavra greve

 

com ê de elo

com rê de rua

 

a palavra é tua.

 

Ao teu grito

quem recua?

 

— Que te mata.

 

Mata o medo

mágica palavra

pára a máquina

mostra a mão

que move o mundo

mede a força que dorme

mede o aço que ferve

no braço que se cruza.

 

Quem sabe o dom da palavra

é quem a usa.

 Oswald Barroso

Fortaleza, junho de 1979