quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

POEMA ANACRÓNICO - Alexandre O´Neill

POEMA ANACRÓNICO

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s… b… de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»
(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?..)
Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié…

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?
Não é viver.

É arte, lazeira, briol, poesia pura!
Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme…)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia…
Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p’ra
morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux…
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
… sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes…

Dize tu: – Já começou, porém, a racionalização do
trabalho.
Direi eu: – Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, de escarnecer de mim…

Saber viver é vender a alma ao diabo,

Alexandre O´Neill

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

O que mais dói - Patativa do Assaré

 

O que mais dói

O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.
Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.
O que mais dói e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.
É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.


Patativa do Assaré

 Antônio Gonçalves da Silva,

mais conhecido como Patativa do Assaré,

 completaria 112 anos em 2021


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

EM QUE LÍNGUA ESCREVER / NA KAL LINGU KE N NA SKRIBI NEL -

EM QUE LÍNGUA ESCREVER                    NA KAL LINGU KE N NA SKRIBI NEL

 

              (português)                                                                        (kriol)                   

 

Em que língua escrever                                                 Na kal lingu ke n na skribi

 

As declarações de amor?                                              Ña diklarasons di amor?

 

Em que língua cantar                                                     Na kal lingu ke n na kanta

 

As histórias que ouvi contar?                                        Storias ke n contado?

 

 

 

Em que língua escrever                                                 Na kal lingu ke n na skribi

 

Contando os feitos das mulheres                       Pa n konta fasañas di indjeris             

 

E dos homens do meu chão?                                      Ku omis di ña tchon?

 

Como falar dos velhos                                Kuma ke n na papia di no omis garandi

 

Das passadas e cantigas?                                             Di no passadas ku no kantigas?

 

Falarei em crioulo?                                                         Pa n kontal na kriol?

 

Falarei em crioulo!                                                         Na kriol ke n na kontal!

 

Mas que sinais deixar                                           Ma kal sinal ke n na disa

 

Aos netos deste século?                                           Netus di no djorson?    

 

               

 

 Ou terei que falar                                                          O n na tem ku papia

 

 Nesta língua lusa                                                            Na e lingu lusu

 

 E eu sem arte nem musa                                              Ami ku ka sibi

 

                                                                                        Nin n ka tem kin ku na oioin

 

Mas assim terei                                                               Ma si i bin sedu sin

 

palavras para deixar                                                      N na ten palabra di pasa

 

                                                   

 

Aos herdeiros do nosso século                                 Erderos di no djorson

 

                                                                                            Ma kil ke n ten pa konta

 

Em crioulo gritarei                                                       N na girtal na kriol

 

A minha mensagem                                                      Pa recadu pasa

 

Que de boca em boca                                                 di boka pa boka

 

Fará a sua viagem                                                         Tok i tchiga si distino

 

 

 

Deixarei o recado                                                         Ña recadu n na disal tambi

 

Num pergaminho                                                         na um fodja

 

Nesta língua lusa                                                     Na e lingu di djinti

 

Que mal entendo                                                          Pa no netus

 

E ao longo dos séculos                                      ku no erderos bin sibi

 

No caminho da vida                                                     Kin ke no sedu ba

 

Os netos e herdeiros                                           Anos... mindjeris ku omis d’e tchon

 

Saberão quem fomos                                                Ke firmanta no storia

 

Odete Semedo

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

A sua civilidade é um cerco - Iker Suarez

Na esteira do cessar-fogo em Gaza, um poema sobre a manutenção da clareza militante sobre o que o último ano de genocídio sionista significa para escritores e pessoas de consciência em todo o mundo.

Por Iker Suarez  19 de janeiro de 2025  1

A sua civilidade é um cerco

Espero que mantenhamos
a clareza emocional
analítica
política
e irrefutável

de vidas
transformadas em
escombros.

De Gaza e
seus tempos
de angústia.

Espero que mantenhamos
os mistificadores afastados,
nuances
- ferramentas
de
genocídio -
na fogueira,
sem piedade
para os carrascos
e seus
cúmplices.

Espero que atendamos
ao chamado
para lutar com
amor indignado e
irritado,
para não vacilar
seja em apuros
ou solidão,
isolamento ou
solidão,
barragens de mentiras
ou simples
exaustão.

Espero que continuemos
quando escrevemos
quando pensamos
quando falamos
quando sentimos
a clareza desconfortável

de nos opormos a nada
além da morte pura
do colonizador,
patriarca,
chefe,
credor,
mestre

Espero que não modulemos
nosso discurso,
não capitulemos
em palavras,
não renunciemos
à
nossa capacidade
- nosso dever -
de lutar,
nossa dignidade
- nossa recusa,
como disse um amigo,
de ser transformado
em um monstro.

Espero que mantenhamos
a clareza emocional,
física,
política,

analítica e irrenunciável
de que sua moderação
significa extinção,
sua complacência,

atrito e sua civilidade,
um estado de sítio

sua civilidade
é apenas a expressão
de seu desejo
de morte
e destruição final

Espero que entendamos
que cada linha
é um campo de batalha,
cada compromisso,
uma extorsão,
cada verso,
uma expressão
do desamparado
Al Andalus
e do resistente
Falasteen

Espero que mantenhamos
a
lucidez
apocalíptica
de que sua civilidade
nada
mais é do que
um cerco.

Poem:Your civility is a siege

In the wake of the ceasefire in Gaza, a poem about maintaining militant clarity on what the last year of Zionist genocide means for writers and people of conscience across the world.

By Iker Suarez  January 19, 2025  1

I hope we keep
the emotional
analytical
political
irrefutable
clarity
of lives
turned into
rubble.

Of Gaza and
its times
of trouble.

I hope we keep
mystifiers at bay
nuances
—tools
of
genocide—
on the stake,
no mercy
for executioners
and their
accomplices.

I hope we
heed the call
to fight with
indignant,
angered love,
to not falter
whether in trouble
or solitude,
isolation or
solitary,
barrages of lies
or simple
exhaustion.

I hope we keep
when we write
when we think
when we speak
when we feel
the uncomfortable
clarity
of opposing nothing
but the sheer death
by colonizer,
patriarch,
boss,
creditor,
master

I hope we
do not modulate
our discourse,
do not capitulate
in words,
do not forgo
our capacity
—our duty—
to fight,
our dignity
—our refusal,
as a friend once said,
to be turned
into a monster.

I hope we keep
the emotional,
physical,
political,
analytical,
irrenounceable
clarity
that your moderation
means extinction,
your complacency,
attrition,
and your civility,
a state of siege

your civility
is but the expression
of your wish
of death
and ultimate
destruction

I hope we understand
that every line
is a battlefield
every compromise
an extortion
every verse
an expression
of forlorn
Al Andalus
and resistant
Falasteen

I hope we keep
the
apocalyptic
lucidity
that
your civility
is nothing
but a siege.

 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Mãos dadas e Verdade - Carlos Drummond de Andrade

Mãos dadas


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

Verdade

A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia-verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Uma litania pela sobrevivência - Audre Lorde

Uma litania pela sobrevivência

Para aqueles entre nós que vivem no litoral
em pé frente às arestas constantes da decisão
cruciais e sós
para aqueles entre nós que não podem dar-se ao luxo
dos sonhos passageiros da decisão
que amam de passagem por soleiras
nas horas entre auroras
olhando para dentro e para fora
no instante antes e depois
buscando um agora que possa gerar
futuros
como pão na boca de nossos filhos
para que seus sonhos não reflitam
a nossa morte:

Para aqueles entre nós
que foram impressos com o medo
como uma linha tênue no centro de nossas testas
aprendendo a temer com o leite de nossas mães
pois por esta arma
esta ilusão de alguma segurança a ser achada
os de passos pesados esperavam silenciar-nos
Para todos nós
esse instante e esse triunfo
Nunca fomos destinados a sobreviver.

E quando o sol se ergue temos medo
que talvez não permaneça
quando o sol se põe temos medo
que talvez não se erga de manhã
quando nossos estômagos estão cheios temos medo
da indigestão
quando nossos estômagos estão vazios temos medo
que talvez nunca mais comamos
quando nós amamos temos medo
que o amor desaparecerá
quando estamos sós temos medo
que o amor jamais voltará
e quando falamos temos medo
que nossas palavras não sejam ouvidas
nem benvindas
mas quando estamos em silêncio
ainda assim temos medo

Então é melhor falar
lembrando-nos
de que nunca fomos destinados a sobreviver

Audre Lorde

(tradução de Ricardo Domeneck)

A litany for survival
Audre Lorde

For those of us who live at the shoreline
standing upon the constant edges of decision
crucial and alone
for those of us who cannot indulge
the passing dreams of choice
who love in doorways coming and going
in the hours between dawns
looking inward and outward
at once before and after
seeking a now that can breed
futures
like bread in our children's mouths
so their dreams will not reflect
the death of ours:

For those of us
who were imprinted with fear
like a faint line in the center of our foreheads
learning to be afraid with our mother's milk
for by this weapon
this illusion of some safety to be found
the heavy-footed hoped to silence us
For all of us
this instant and this triumph
We were never meant to survive.

And when the sun rises we are afraid
it might not remain
when the sun sets we are afraid
it might not rise in the morning
when our stomachs are full we are afraid
of indigestion
when our stomachs are empty we are afraid
we may never eat again
when we are loved we are afraid
love will vanish
when we are alone we are afraid
love will never return
and when we speak we are afraid
our words will not be heard
nor welcomed
but when we are silent
we are still afraid

So it is better to speak
remembering
we were never meant to survive


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

É vital, Vidal-Coragem

É vital, Vidal-Coragem


É vital, Marta Vidal

É vital a coragem, Marta

É vital o exemplo

a dignidade firme, estruturada

sem cedências

É vital abrir o caminho à esperança.

 

É vital, necessário e urgente

não mais conjugar o verbo bajular

fazer pensar, arejar mentes bafientas

afastar ósculos rançosos, abraços viscosos

O vero prémio foi a tua postura

Vidal-Coragem, luz de uma classe em declínio.

 

Num gesto, surge a verticalidade limpa

o esplendor de uma urgência que

marca para sempre a vida

a que merece ser vivida

Marta-Coragem

Assumida.

 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Ilse Losa - Fonte

 

Fonte

SE me perguntardes: Onde bebeste?

Responderei:

Bebi em rios que arrastam lodo,

Arame farpado e sangue.

Em rios que reflectem céus negros,

Lágrimas de tortura, destruição,

Ruínas, companheiros mortos,

Meninos e velhos a mendigar ternura...

 

Nestes rios bebi.

 

Mas depois vos direi:

Nos meus rios há também a Primavera,

Orvalho, música e laranjais,

Há violetas, andorinhas, céu azul,

Braços que erguem colunas e pontes,

Sorrisos de crianças e a palavra mãe.

E há um horizonte iluminado

Com a vitória duma manhã que irrompe.


Ilse Losa

Janeiro - 1952.