quarta-feira, 28 de maio de 2025

Efraín Huerta - Hoje assinei a Paz.

 

Hoje assinei a Paz

Sob as altas árvores da Alameda

e uma jovem com olhos de esperança.

Junto com ela, outras jovens pediram mais assinaturas

e aquela hora foi como uma pátria iluminada

do amor ao amor, da graça pela graça,

de uma luz para outra luz.

Hoje assinei a Paz.

E comigo, em cem países, cem milhões de assinaturas,

cem orquestras do mundo, uma sinfonia universal,

uma única canção pela Paz no mundo.

Hoje não assinei o poema nem os pequenos artigos,

nem o documento que te escraviza,

Eu não assinei a carta que não sente

nem a mensagem que durará um segundo.

Hoje assinei a Paz.

Para que o tempo não pare,

para que o sonho não imobilize,

para que o sorriso seja alto e claro,

para que uma mulher aprenda a ver seu filho crescer

e os alunos do filho veem como sua mãe fica cada dia mais jovem.

Hoje dei uma assinatura, minha, pela Paz.

Um mar de assinaturas que afogam e atordoam

ao industrial e ao político da guerra.

Uma onda gigantesca de assinaturas gigantescas:

o tremor da criança que mal balbucia a palavra,

que é uma rosa das lágrimas da mãe,

a assinatura da humildade – a assinatura do poeta.

Hoje aumentei em um o número mundial de assinaturas pela Paz.

E estou feliz como um adolescente apaixonado,

como uma árvore em pé,

como a primavera inesgotável

e como o rio com seu canto de cristais soberbos.

Hoje parece que não fiz nada

e ainda assim, dei a minha assinatura pela Paz.

A jovem sorriu para mim e em seus lábios havia uma pomba viva,

e ele me agradeceu com seus olhos de esperança

e continuei meu caminho em busca de um livro para meus filhos.

Bem, lá estava a minha assinatura, precisa e clara,

ao pé do Apelo de Berlim.

Parece que não fiz nada

e ainda assim, acredito que multipliquei minha vida

e multiplicou os desejos mais saudáveis.

Hoje assinei a Paz.

Autógrafo

Archivo:Efraín Huerta (firma).svg - Wikipedia, la enciclopedia libre

Efraín Huerta

 

Hoy he dado mi firma para la Paz

Hoy he dado mi firma para la Paz.
Bajo los altos árboles de la Alameda
y a una joven con ojos de esperanza.
Junto a ella otras jóvenes pedían más firmas
y aquella hora fue como una encendida patria
de amor al amor, de gracia por la gracia,
de una luz a otra luz.
Hoy he dado mi firma para la Paz.
Y conmigo, en cien países, cien millones de firmas,
cien orquestas del mundo, una sinfonía universal,
un solo canto por la Paz en el mundo.
Hoy no he firmado el poema ni los pequeños artículos,
ni el documento que te esclaviza,
no he firmado la carta que no siente
ni el mensaje que durará un segundo.
Hoy he dado mi firma para la Paz.
Para que el tiempo no se detenga,
para que el sueño no se inmovilice,
para que la sonrisa sea alta y clara,
para que una mujer aprenda a ver crecer a su hijo
y las pupilas del hijo vean cómo su madre es cada día más joven.
Hoy he dado una firma, la mía, para la Paz.
Un mar de firmas que ahogan y aturden
al industrial y al político de la guerra.
Una gigantesca oleada de gigantescas firmas:
la temblorosa del niño que apenas balbucea la palabra,
la que es una rosa de llanto de la madre,
la firma de humildad —la firma del poeta.
Hoy he elevado en una el número mundial de firmas por la Paz.
Y estoy contento como un adolescente enamorado,
como un árbol de pie,
como el inagotable manantial
y como el río con su canción de soberbios cristales.
Hoy parece que no he hecho nada
y sin embargo, he dado mi firma para la Paz.
La joven me sonrió y en sus labios había una paloma viva,
y me dio las gracias con sus ojos de esperanza
y yo seguí mi camino en busca de un libro para mis hijos.
Pues ahí estaba mi firma, precisa y diáfana,
al pie del Llamamiento de Berlín.
Parece que no he hecho nada
y sin embargo, creo haber multiplicado mi vida
y multiplicado los más sanos deseos.
Hoy he dado mi firma para la Paz.

 

domingo, 25 de maio de 2025

1º. MAIO - FERNANDO PEIXOTO.

 

1º. MAIO

 

Há Maio em cada rosto

em cada olhar

que passa pelo asfalto da Avenida

Há Maio em cada braço

que se ergue

há Maio em cada corpo em cada vida

 

Há Maio em cada voz

que se levanta

há Maio em cada punho que se estende

há Maio em cada passo

que se anda

há Maio em cada cravo que se vende

 

Há Maio em cada verso

que se canta

há Maio em cada uma das canções

há Maio que se sente

e contagia

no sorriso feliz das multidões

 

Há Maio nas bandeiras

que flutuam

e mancham de vermelho

o céu de anil

Há Maio de certeza

em cada peito

que sabe respirar o ar de Abril

 

Mas há Maio sobretudo

no poema

que se escreve sem ler o dicionário

porque Maio há-de ser

mais do que um grito

porque Maio é ainda necessário

 

Canto Maio e se canto

logo existo

que o meu canto de Maio é solidário

com o canto que escuto

e em que medito

e que sai da boca do operário

 

 FERNANDO PEIXOTO.

Um abraço, Fernando, e obrigado pelo teu poema.
Amanhã por lá estarei a recordar como foi belo aquele primeiro 1º de Maio em que uma onda maciça de pessoas inundou a Praça General Humberto Delgado, a Avenida dos Aliados e a Praça da Liberdade, no Porto. E gritamos bem alto LIBERDADE, VIVA O PRIMEIRO DE MAIO, FASCISMO NUNCA MAIS, 25 de ABRIL, SEMPRE...

Façamos deste Maio um grito de Liberdade!
José Gomes

sexta-feira, 23 de maio de 2025

O povo - Miquel Martí i Pol

 

O povo

 

O povo é um velho teimoso,

é uma menina sem namorado,

é um pequeno comerciante em descrédito,

é um parente com quem brigamos há muito tempo.

 

O povo é uma abafada tarde de verão

é um castelo sobre a areia

é a chuva fina de novembro.

 

O povo é quarenta anos a subir andaimes,

é a breve ansiedade do domingo à tarde,

é a família como base da sociedade futura,

é o conjunto de seus habitantes, etc., etc.

 

O povo é o meu esforço e o vosso esforço,

é minha voz e vossa voz,

é a minha pequena morte e a vossa pequena morte.

O povo é conjunto do nosso esforço

e da nossa voz

e da nossa pequena morte.

O povo és tu e tu e tu

e todas a gente que não conheces,

e os teus segredos

e os segredos dos outros.

O povo são todos,

o povo não é ninguém,

O povo é tudo:

o princípio e o fim,

o amor e ódio,

a voz e o silêncio,

vida e a morte.

Miquel Martí i Pol

De ' O Povo' Versão de Adolfo García Ortega

 

El pueblo

El pueblo es un viejo tozudo,
es una muchacha sin novio,
es un pequeño comerciante en descrédito,
es un pariente con quien reñirnos hace mucho tiempo.

El pueblo es una bochornosa tarde de verano,
es un castillo sobre la arena,
es la lluvia fina de noviembre.

El pueblo es cuarenta años de subirse a los andamios,
es la breve ansiedad del domingo por la tarde,
es la familia como base de la sociedad futura,
es el conjunto de sus habitantes, etc., etc.

El pueblo es mi esfuerzo y vuestro esfuerzo,
es mi voz y vuestra voz,
es mi pequeña muerte y vuestra pequeña muerte.
El pueblo es el conjunto de nuestro esfuerzo
y de nuestra voz
y de nuestra pequeña muerte.
El pueblo eres tú y tú y tú
y toda la gente que no conoces,
y tus secretos
y los secretos de los otros.
El pueblo es todos,
el pueblo es nadie,
El pueblo es todo:
el principio y el fin,
el amor y el odio,
la voz y el silencio,
la vida y la muerte.

De "El pueblo"
Versión de Adolfo García Ortega

 

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Este homem que esperou - António Ramos Rosa

 

Este homem que esperou

Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra duma árvore
mudar a direcção
ao seu pobre destino

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

António Ramos Rosa

 


terça-feira, 13 de maio de 2025

Senso comum - William Eaton

 

Senso comum*

 

Ela não lhe ocorria que ele era

Um socialista

E ele - embora pudesse - não tinha carro

Nunca apanhava um táxi

Havia tantas coisas que

Ele não entendia

Era a necessidade reduzir os impostos e os encargos laborais

Eliminar toda a regulamentação ambiental que fazia mais mal que bem

Em que realmente acreditava?

Ele nunca tinha assistido a um podcast!

Antes que ele a despisse

Ela fê-lo apagar a luz.

 

William Eaton

*O título em inglês "Common sense" - a sensação que tenho, é que para a classe comercial americana, esta frase se tornou uma frase de código. Pode traduzir-se: quero pagar menos impostos e salários mais baixos e não ter a atividade financeira prejudicada por qualquer necessidade de proteger o ambiente ou a saúde humana.

English

Common sense

She couldn’t get over that he was

A socialist

And he – although he could afford one – he had no car

Never took a taxi

There were so many things

He didn’t understand

The need to cut taxes and the ever-rising cost of labor

The need to eliminate all the environmental regulations that did more harm than good

What did he really believe in?

He’d never watched a podcast!

Before he took her clothes off

She made him turn off the lights.

Français

Du bon sens

Elle n’en revenait pas qu’il était

Socialiste

Il avait les moyens d’en acheter une, mais il était sans voiture

Ne prenait jamais de taxi

Il y avait tant de choses que lui

Il ne comprenait pas

Qu’il fallait réduire des impôts et les charges patronales

Éliminer toutes les réglementations environnementales qui faisaient plus de mal que de bien

En quoi croyait-il vraiment ?

Il n’avait jamais regardé un podcast !

Avant qu’il ne la déshabille

Elle l’a obligé à éteindre la lumière.

Español

¿Un poco de sentido común?

Ella no podía superar que era

socialista

Aunque podía permitirse uno, no tenía coche

Nunca cogía taxis

Había tantas cosas que él

No entendía

Que había que reducir los impuestos y el coste laboral

Eliminar todas las normativas medioambientales que hacían más mal que bien

¿En qué creía él realmente?

¡Nunca había visto un podcast!

Antes de que él la desnudara

Ella le hizo apagar las luces.


— Poem(s) and photograph by 
William Eaton

 

sábado, 10 de maio de 2025

Perfeição - Renato Russo

 

Perfeição

1
Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país com sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa política e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado que não é nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar
Eros e Thanatos
Persephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade

2
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais
Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre
E todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo
Nosso pequeno universo
Toda hipocrisia e toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias:
É a festa da torcida campeã

3
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
( A lágrima é verdadeira )
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão

4
Vamos festejar a inveja
A intolerância e a incompreensão
Vamos festejar a violência
E esquecer a nossa gente
Que trabalhou honestamente a vida inteira
E agora não tem mais direito a nada
Vamos celebrar a aberração
De toda a nossa falta de bom senso
Nosso descaso por educação
Vamos celebrar o horror
De tudo isso - com festa, velório e caixão
Está tudo morto e enterrado agora
Já que também podemos celebrar
A estupidez de quem cantou esta canção

5
Venha, meu coração está com pressa
Quando a esperança está dispersa
Só a verdade me liberta
Chega de maldade e ilusão

Venha, o amor tem sempre a porta aberta
E vem chegando a primavera
Nosso futuro recomeça
Venha, que o que tem é perfeição

Renato Russo

sexta-feira, 9 de maio de 2025

5 PROSAS - Armando Silva Carvalho


5 PROSAS

ao Jorge Dias Deus

I

Vêm os homens com seu trabalho apenso

destros finitos

e coração loquaz

os homens passam rente

calam a boca aos livros

raspam a chuva com dedos pacientes

 

abalam a madeira destas leis

perfuram o silêncio

conversam entre as folhas de uma ideia

tocam nos caules frios aliviando

são mais que simples

usam os gestos de uma chávena

contam o dinheiro as trocas

a fadiga

 

olho estes homens com a

pele no cimento que estão

estendendo a luta como uma passadeira

 

batem na terra dura

que cobre a alegria. Ouço-lhe

o sangue e ergo o rosto

que já se transfigura.

 

Aperto o passo onde vejo sinais

gotas de vinho vivo um sexo

uma revolta. E mais

 

atiro o grito aos homens

para que não fique surdo:

aonde sou capaz.

Armando Silva Carvalho

 

sábado, 3 de maio de 2025

AO REVOLUCIONÁRIO VASCO GONÇALVES - Gastão Cruz

 

03-05-1921  -  11-06-2005

AO REVOLUCIONÁRIO VASCO GONÇALVES

Queria usar a língua em que escrevi
os versos mudos da poesia lírica
para o discurso prático
da revolução escrita.

Ninguém já entendia o vapor grave
e gasto da linguagem.
Durante a desejámos, canto enquanto
desejo, com o gasto
movimento dos versos. Quem entende
a voz da sua boca equivocada?

Desconheço o silêncio. Conheci-o
com o entendimento de quem vive.

Por isso este poema não é épico,
é um simples
poema em quadras íntimas:
um revolucionário
não cabe na política
mas cabe
nos metros úteis da poesia escrita.


Gastão Cruz

 


sexta-feira, 2 de maio de 2025

La Crosse En L'air partie 1 e 2 Jacques Prévert / Serge Reggiani

Um grande poeta e um extraordinário diseur num trabalho perfeito
(2)»   https://youtu.be/dpgmHuqVwR4?si=ds-ii8-ob7dGXJMe

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO - Vinicius de Moraes

O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO


     E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe
     num momento de tempo todos os reinos do mundo.
     E disse-lhe o Diabo:
     — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque
     a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto,
     se tu me adorares, tudo será teu.
     E Jesus, respondendo, disse-lhe:
     — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás
     o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.
     Lucas, cap. IV, versículos 5-8


Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão —
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
— Exercer a profissão —
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
— “Convençam-no” do contrário —
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
— Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

— Loucura! — gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
— Mentira! — disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.

Vinicius de Moraes