HÁ UMA HORA,
HÁ UMA HORA CERTA
LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS
Há uma hora, há
uma hora certa
que um milhão
de pessoas está a sair
para a rua.
Há uma hora, desde as sete e
meia horas
da manhã
que um milhão
de pessoas está a sair
para a rua.
Estamos no ano
da graça de 1946
em Lisboa, a sair para
o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente-gente, olhos,
narinas, bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas,
varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro
dos outros
torricando, sorrindo, abrindo os sobretudos,
descendo aos mictórios para
apanhar elétricos,
gente atrasada em relação
ao barco para o Barreiro
que afinal ainda
lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente
silenciosa
mas obrigada a falar
ao vizinho da frente
na plataforma veloz do elétrico
em marcha,
gente jovial a acompanhar
enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito
mais.
Humanidade cordial, em
suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair
para o meio
da rua.
E agora, neste momento – que horas são? –
a telefonista guarda o Báton na mala
usa os auscultadores
liga eletricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro
escalou para o telhado
mais alto
e cantou qualquer coisa
pra começar o dia
o banqueiro
sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou um
bocado na família
e começou o dia
a varina infetou a perna
esquerda nos
lixos da Ribeira
e começou o dia
o desempregado ergueu-se, viu chuva
na vidraça, e imaginou-se banqueiro
para começar o dia
e o presidiário, ouvindo a sineta
das nove,
começou o seu dia sem dar início a coisa alguma.
Agora fumo, trepidação,
correias volantes de um
a outro extremo
da fábrica isolada, cigarros
meio fumados em
cinzeiros de prata,
bater de portas – pás!
– em muitas repartições,
uma velha
a morrer silenciosamente
em plena
rua
e um detido a apanhar porrada embora
acreditem nele.
Agora pranto e pranto
na bata da
manucure apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão, milhões
de anos para trás,
patas em vez
de mãos, beiços
em vez
de lábios,
crocodilos a rir em
corredores bancários
apesar das mulheres terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto
e nada disto
em plena e indecorosa
licenciosidade comercial
pregando partidas,
coçando, arruinando, retorcendo o facto atrás
dos vidros
- um tiro nos miolos e muito obrigado, sempre
às ordens!
(a velha já morreu e no seu
leito de morte
está agora um automóvel
verdadeiramente aerodinâmico
e a tocar telefonia: and
you, and you my Darling?)
Há uma hora, Isto! Há duas, ISTO!
E eu?
Eu, nada. Eu,
eu, é claro...
Paro um pouco a enrolar o meu cigarro
(chove)
e vejo um gato branco à janela de um prédio bastante
alto
Penso que a questão
é esta: a gente – certa
gente – sai para
a rua,
cansa-se, morre todas as manhãs
sem proveito
nem glória
e há gatos brancos à janela
de prédios bastante
altos!
Contudo e já agora
penso
que os gatos são
os únicos burgueses
com quem ainda
é possível pactuar
–
vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas
do alto, desdenhando-a...
Não, a probabilidade do dinheiro
ainda não
estragou inteiramente o gato
mas de gato pra
cima – nem
pensar nisso é bom!
Propalam não
sei que náusea,
retira-se-me o estômago só de olhar para
eles!
São criaturas, é verdade,
calcule-se,
gente sensível e às vezes
boa
mas tão recomplicada, tão biolo-cosida, tão
ininteligível
que já conseguem chorar,
com certa
sinceridade,
lágrimas cem por
cento hipócritas.
E o certo é que ainda têm rapazes de Arte, gente
que pôs a alegria a pedir
esmola e nessa mesma
noite foi comprar
para o cinema
porque há que ir
ao cinema, ele
é por força,
é por mor
de Deus, ah, não!
não! isso
não!, não se
atravessem nesta bilheteira!!
Vamos estar
tão bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que vê o logro? A quem é
que isto
cheira a ranço?
Porque é que a freguesa de Panos Limitada não
exige três quartas
de cinema
e sim três quartas partes de lã carneira?
Porque é que a pianista
compra do Alves Redol
quando está a pensar nas pernas
e no peito do louro
galã yankee?
E porque raio despede o senhor Diretor três
humílimos empregados
quando a verdade é que
já lá
vão três
meses e ainda não
viu um que
lhe enchesse as medidas?
Com certa espécie
de solidariedade
lembro-me de ti, Mário de Sá-Carneiro,
Poeta-gato-branco à janela
de muitos prédios
altos.
Lembro-me de ti, ora
pois, para saudar-te,
para dizer bravo
e bravo, isso
mesmo, tal
qual!
Fizeste bem, viva Mário!, antes
a morte que isto,
viva Mário a laçar um
golpe de asa
e a estatelar-se todo cá em baixo
(viva, principalmente, o que
não chegaste a saber,
mas isso
é já outra
história...)
E com uma solidariedade muito
mais viva
lembro-me de ti, meu
vizinho de baixo,
sapateiro-gato-branco, mas
no rés-do-chão, desta vez...
É curioso que não te possas suicidar
só porque a tua janela
está ao nível do mundo
e que cantes alegremente de manhã
à noite
como uma casa de seis
andares em
cima de ti.
Também tu foste empurrado, também te
disseram: Fora, gato!
Mas achaste isso quase
natural (e não
o é, deveras?)
E agora,
guardando em ti todas as tuas grandes qualidades
vais vivendo um
pouco à margem,
um pouco
no quinto andar...
Deito fora o cigarro que já me sabia a amargo
e decido-me a andar – mas para quê? Mas para onde?
As lojas estão abertas mas nunca se viu coisa tão fechada
Ah! heróis do trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um proletário
– vê-se logo
- mas odeio cordialmente a gataria
e quanto a crocodilos, nem
os do Jardim Zoológico
me atraem
quanto mais estes!
– E aqui é que
começa o embróglio...
O pouco amor que eu tive à burguesia
deixei-o todo
numa casa de passe
quando me perguntaram: quer assim? Ou assim?
E agora, era fatal, falto ao escritório,
falto ao escritório, pontualmente,
todas as manhãs.
Mas vejamos, ó minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa
escura que
te deram.
Eu
estudei música,
como toda
a gente
(ou talvez um pouco mais do que toda a gente?)
Não. Por aqui
não nos
entenderemos.
Estudemos outro
papel. Outro fim. Outras músicas.
Recomecemos:
Um:
Estes versos não
querem de modo algum
ser versos
porque quem hoje
em Portugal quer
de algum modo
fazer versos versos está em muito maus
lençóis
(este o primeiro artigo da minha constituição)
Segundo:
Apesar de tudo, saí para
a rua com
bastante naturalidade
e que vi eu? Que é isto? (e que
esperava eu ver?)
Terceiro:
(e aqui começa, talvez,
o desembróglio)
vi também um vapor que ia para o Barreiro
e tive pena de não ir com
ele
mas não sou um
proletário (não,
ainda não)
e atravessar a nado – quem é que disse que
pode?
Fiquei-me a vê-lo: primeiro
junto ao cais
com um certo
ar simpático
de proletário dos mares
e apinhado de gente – tanta espécie dela!
Depois a meio do rio,
destacado e nítido,
depois um ponto
vago no horizonte
(ó minha angústia!)
ponto cada vez
mais vago no horizonte
e de repente,
ao virar uma esquina,
já depois
de outra esquina,
vejo uma nova espécie de enforcado
um homem novo
em cima
de um escadote
a colar afixar
cartazes deste género:
VOTA POR
SALAZAR
Paro. Paro de novo. Pararei
sempre enquanto
afixarem cartazes
deste género.
Curioso, curiosíssimo este género.
Um chefe não
é grande pelo
nome que
arranjou.
Salazar Xavier Francisco da Cunha
Altinho isso que
importa.
Um chefe é grande
pelas suas obras,
pelo amor que inspira.
Pois os fascistas os nossos bons fascistas
querem que a gente vote por um nome
por um nome
calcula essa coisa qualquer
que qualquer
fulano tem!
Vota por Salazar ora
pois ó meu povo
vota por sete
letras muito
bem arrumadas em
três sílabas.
Deito a cabeça para trás para deixar sair
a gargalhada
e aproximo-me do homem
em cima
do escadote
aproximo-me tanto
que ele
nota
alguém que se aproxima
e o braço
cai-lhe, grosso, pingando água num balde
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ...
... Dá os bons dias a este irmão, a este bom irmão
que anda a colar
cartazes para
não morrer
de fome!...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ...
Mário Cesariny
nobilíssima visão;
louvor e simplificação de Álvaro de Campos
(fragmento)
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