(Mesopotâmia 1000 a.C.)
Arad mitanguranni: o Diálogo do Pessimismo
ou: um Senhor e seu Escravo
ou: um Senhor e seu Escravo
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei ao palácio!”
“Vai ao palácio, meu senhor. Vai ao palácio.
O rei ficará feliz em te ver e será benevolente”.
“Não, meu escravo. Não irei ao palácio!”
“Não vás, meu senhor. Não vás ao palácio.
Serás mandado pelo rei a alguma missão longínqua,
por estradas estranhas, montanhas hostis;
dia e noite sujeito a mazelas e dor”.
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei ao palácio!”
“Vai ao palácio, meu senhor. Vai ao palácio.
O rei ficará feliz em te ver e será benevolente”.
“Não, meu escravo. Não irei ao palácio!”
“Não vás, meu senhor. Não vás ao palácio.
Serás mandado pelo rei a alguma missão longínqua,
por estradas estranhas, montanhas hostis;
dia e noite sujeito a mazelas e dor”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Busca a água e derrama-a em minhas mãos: quero jantar”.
“Janta, meu senhor. Janta.
Comer alegra o coração. O jantar de um homem
é o jantar de seu deus, e mãos limpas fisgam o olhar de Šamaš”.
“Não, meu escravo. Não jantarei!”
“Não jantes, senhor. Não jantes.
Bebida e sede, comida e fome
nunca abandonam o homem, nem a si próprias”.
“Busca a água e derrama-a em minhas mãos: quero jantar”.
“Janta, meu senhor. Janta.
Comer alegra o coração. O jantar de um homem
é o jantar de seu deus, e mãos limpas fisgam o olhar de Šamaš”.
“Não, meu escravo. Não jantarei!”
“Não jantes, senhor. Não jantes.
Bebida e sede, comida e fome
nunca abandonam o homem, nem a si próprias”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei passear pelo campo”
“Isso, meu senhor, isso. Despreocupado, o caçador
tem sempre a barriga cheia, o cão de rua sempre
encontra o osso, a andorinha que migra domina a arte de fazer ninhos
o onagro encontra a relva no mais seco dos desertos”.
“Não, meu escravo, não irei passear pelo campo”.
“Não vás, meu mestre. Não te dês ao trabalho.
É sempre fugaz a sorte do caçador,
o cão de rua perde os dentes. O ninho
da andorinha que migra é enterrado pela argamassa.
Terra nua é o leito do onagro”.
“Rápido, busca minha carruagem e arreia os cavalos: irei passear pelo campo”
“Isso, meu senhor, isso. Despreocupado, o caçador
tem sempre a barriga cheia, o cão de rua sempre
encontra o osso, a andorinha que migra domina a arte de fazer ninhos
o onagro encontra a relva no mais seco dos desertos”.
“Não, meu escravo, não irei passear pelo campo”.
“Não vás, meu mestre. Não te dês ao trabalho.
É sempre fugaz a sorte do caçador,
o cão de rua perde os dentes. O ninho
da andorinha que migra é enterrado pela argamassa.
Terra nua é o leito do onagro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Tenho vontade de constituir família, desejo ter filhos”.
“Bem pensado, meu senhor. Isso, tem filhos.
Quem constitui família garante o seu nome, orações póstumas o repetem”.
“Não, meu escravo. Não constituirei família, não terei filhos!”
“Não o faças, meu senhor. Não os tenhas!
Uma família é uma porta torta, sua dobradiça range.
De cada três filhos, só um é sadio; os outros dois, doentes.”
“Mas devo constituir família?” “Não, não o faças.
Quem constitui família desperdiça seu lar ancestral”.
“Tenho vontade de constituir família, desejo ter filhos”.
“Bem pensado, meu senhor. Isso, tem filhos.
Quem constitui família garante o seu nome, orações póstumas o repetem”.
“Não, meu escravo. Não constituirei família, não terei filhos!”
“Não o faças, meu senhor. Não os tenhas!
Uma família é uma porta torta, sua dobradiça range.
De cada três filhos, só um é sadio; os outros dois, doentes.”
“Mas devo constituir família?” “Não, não o faças.
Quem constitui família desperdiça seu lar ancestral”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Vou ceder aos meus inimigos; calarei diante das acusações no tribunal”.
“Isso, meu senhor, isso. Cede aos inimigos;
guarda teu silêncio, meu senhor, diante das acusações”.
“Não, meu escravo! Não irei calar e não cederei!”
“Não cedas, meu senhor, e não te cales.
Mesmo que não abras a boca
impiedosos teus inimigos serão e cruéis,
além de numerosos”.
“Vou ceder aos meus inimigos; calarei diante das acusações no tribunal”.
“Isso, meu senhor, isso. Cede aos inimigos;
guarda teu silêncio, meu senhor, diante das acusações”.
“Não, meu escravo! Não irei calar e não cederei!”
“Não cedas, meu senhor, e não te cales.
Mesmo que não abras a boca
impiedosos teus inimigos serão e cruéis,
além de numerosos”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Desejo liderar uma revolução”.
“Ótimo, meu senhor. Isso, lidera a revolução.
Pois, do contrário, como tu hás de encher tua barriga?
Como poderás vestir o corpo sem revolução?”
“Não, meu escravo. De modo algum serei um revolucionário!”
“Os revolucionários acabam mortos ou cegos e esfolados vivos
ou cegos, esfolados vivos e trancados na masmorra”.
“Desejo liderar uma revolução”.
“Ótimo, meu senhor. Isso, lidera a revolução.
Pois, do contrário, como tu hás de encher tua barriga?
Como poderás vestir o corpo sem revolução?”
“Não, meu escravo. De modo algum serei um revolucionário!”
“Os revolucionários acabam mortos ou cegos e esfolados vivos
ou cegos, esfolados vivos e trancados na masmorra”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Quero amar uma mulher”. “Ama, senhor, ama!”
Quem ama uma mulher esquece toda dor e tristeza”.
“Não, meu escravo. Não quero amar mulher nenhuma!”
“Não ames, meu senhor. Não ames.
Mulher é cilada, tocaia, fosso sem luz,
o ferro afiado de uma adaga para cortar-te a garganta no escuro”.
“Quero amar uma mulher”. “Ama, senhor, ama!”
Quem ama uma mulher esquece toda dor e tristeza”.
“Não, meu escravo. Não quero amar mulher nenhuma!”
“Não ames, meu senhor. Não ames.
Mulher é cilada, tocaia, fosso sem luz,
o ferro afiado de uma adaga para cortar-te a garganta no escuro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Rápido, busca água para lavar-me as mãos: farei oferenda ao meu deus”.
“Isso, faz oferenda, faz oferenda.
Quem sacrifica ao seu deus enche o coração de riquezas;
sente-se generoso, abre-se a sua bolsa”.
“Não, meu escravo. Não farei oferenda alguma!”
“Tem razão, meu senhor. Tem toda razão!
Treina teu deus para te seguir como um cãozinho,
com suas carências de servidão, rituais, sacrifícios”.
“Rápido, busca água para lavar-me as mãos: farei oferenda ao meu deus”.
“Isso, faz oferenda, faz oferenda.
Quem sacrifica ao seu deus enche o coração de riquezas;
sente-se generoso, abre-se a sua bolsa”.
“Não, meu escravo. Não farei oferenda alguma!”
“Tem razão, meu senhor. Tem toda razão!
Treina teu deus para te seguir como um cãozinho,
com suas carências de servidão, rituais, sacrifícios”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Quero fazer um investimento, vou emprestar com juros”.
“Ah, sim, investe, empresta com juros.
Quem investe preserva o que tem, e seu lucro é enorme”.
“Não, meu escravo, não emprestarei, nem investirei!”
“Não invistas, meu senhor. Não emprestes.
Emprestar é como amar, e receber de volta, gerar maus filhos:
todos maldizem o dono do pão que comem.
Ficarão ressentidos e diminuirão teu lucro”.
“Quero fazer um investimento, vou emprestar com juros”.
“Ah, sim, investe, empresta com juros.
Quem investe preserva o que tem, e seu lucro é enorme”.
“Não, meu escravo, não emprestarei, nem investirei!”
“Não invistas, meu senhor. Não emprestes.
Emprestar é como amar, e receber de volta, gerar maus filhos:
todos maldizem o dono do pão que comem.
Ficarão ressentidos e diminuirão teu lucro”.
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Desejo fazer uma boa ação pela minha pátria!”
“Muito bom, meu senhor, muito bom. Faz isso!
Quem faz boas ações pela pátria grava seu nome no ouro do anel de Marduk”.
“Não, meu escravo, não farei boa ação alguma pela pátria”.
“Não faças isso, meu senhor. Não te dês o trabalho.
Vai e caminha pelas ruínas antigas,
olha as caveiras dos nobres e da plebe,
quais foram vilões e quais os benfeitores?”
“Desejo fazer uma boa ação pela minha pátria!”
“Muito bom, meu senhor, muito bom. Faz isso!
Quem faz boas ações pela pátria grava seu nome no ouro do anel de Marduk”.
“Não, meu escravo, não farei boa ação alguma pela pátria”.
“Não faças isso, meu senhor. Não te dês o trabalho.
Vai e caminha pelas ruínas antigas,
olha as caveiras dos nobres e da plebe,
quais foram vilões e quais os benfeitores?”
“Vem, meu escravo, vem servir-me!”
“Pois não, meu senhor?”
“Se é assim, então o que é bom?”
“Bom mesmo seria se quebrassem o meu e o teu pescoço
e depois fôssemos desovados no rio – isso sim!
Quem é tão alto que alcança os céus?
Tão amplo que abarca os infernos?”
“Se assim for, melhor eu te matar, meu escravo: prefiro que tu vás na frente”.
“Se é assim, então o que é bom?”
“Bom mesmo seria se quebrassem o meu e o teu pescoço
e depois fôssemos desovados no rio – isso sim!
Quem é tão alto que alcança os céus?
Tão amplo que abarca os infernos?”
“Se assim for, melhor eu te matar, meu escravo: prefiro que tu vás na frente”.
“E o meu senhor crê que saberias viver três dias sem mim?”
(poema mesopotâmio anônimo,
introdução e tradução de Adriano Scandolara com base nas traduções de Brodsky e
Lambert)
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