(Pawel
Kuczynski)
CONTRATOS
À LUZ DAS VELAS
Do
pouco que me espanta ainda nesta vida
fica
um lugar ambíguo
para
essa multidão de peregrinos
que
vai dar a Fátima.
A
tosca imagem, miudinha e pobre, infantilizada,
deve
ser um sinal,
uma
marca, para o todo absoluto dos desejos,
para
tudo o que não é mas deseja ser.
Um
alvo de universos no mais recolhido coração
de
cada criatura, de vela acesa na mão,
e
nos lábios a repetida melopeia
do
apelo.
Ali
o deus principal não tem qualquer lugar,
Cristo
é uma personagem secundária, quase um figurante,
é
apenas alguém que faz nascer a mãe primeira,
doadora
de bens, saúde, a que perdoa,
protege
e não exige nada,
a
que não define nada, nada prega,
e
nem tem uma doutrina para se entrar no céu.
Entre
as línguas da fé esta fixação
numa
imagem primária, maternal, remota,
remonta
ao mais terreno, regressa ao natural da vida,
é
o avesso da morte,
do
trágico, age por contrato.
E
toda a cova da iria se transforma num gigantesco regaço,
no
colo debruado por luzes e por rogos,
na
imensidão de um seio.
Os
anos vão-me dando estes baixos delírios
de
um pensar redondo,
rasteiro,
rente ao chão e à carne, tresmalhado.
Pesado
de paixão.
Com
ele eu vou seguindo estas cenas arcaicas,
quase
intransmissíveis.
Não
são só as mulheres, sedentas de prodígios,
há
homens de meia-idade,
de
rosto grave e duro e talhado à faca.
É
muita gente junta a pretender salvar-se,
ou
pelo menos salvar algo de concreto e que lhe diz respeito.
Lembro-me
de ter lido um dia que um poeta
ainda
soviético
ficara
deslumbrado com toda a cerimónia.
Lembrava-lhe
o temor,
a
força arrebatada pela crença, o transe colectivo
dos
mujiques, de rastos, almas trespassadas
e
vivas ainda,
por
essa santa loucura russa
que
também destruiu o frágil coração de Rilke.
Não
é tanto o milagre, mas a espera dele,
essa
prestação que tão certeira fere
as
contas da alma e os transportes do corpo.
De joelhos, duras caminhadas, um preço
arrancado
ao
percurso,
e
àquela fogueira de velas tão sinistra.
Essa
luz brutal
que
por fim se torna confidente
nas
mãos de cada um.
ARMANDO
SILVA CARVALHO
de “A SOMBRA DO
MAR” pag.71
ASSÍRIO & ALVIM
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