(Geli Korzhev)
Ofício de
trevas
Poema XXIV
É preciso que tragam a bandeira
É preciso que alguém vá até ao fim da noite
e desenterre a bandeira
Se já não tiver mãos
que rasgue a terra com os dentes
mas que traga a bandeira
Se já não tiver dentes
que afunde os olhos nessa terra
e lhe arranque a bandeira
que nela está sepulta
É preciso que os tambores anunciem
a chegada da bandeira
Se não houver tambores
que os mortos se alevantem
e façam rufar seus ossos
em sol altíssimo à chegada da bandeira
Iluminem Iluminem Iluminem
o caminho da bandeira
Se as nuvens de baionetas forem
trevas no caminho da bandeira
que incendeiem a noite com as pedras da rua
mas que haja luz à passagem da bandeira
para que os olhos vazados vejam a bandeira
para que as bocas rasgadas cantem a bandeira
para que os ferros caiam à passagem da bandeira
Carlos Maria
de Araújo
Araújo, 1960 p.42-3
Carlos Maria de Araújo segundo Jorge
de Sena
[...]
A
sua obra muito breve é por certo das mais notáveis da poesia portuguesa que o
desconhece ainda [...]; e pode considerar-se representada pelos dois livros que
publicou pouco antes de morrer. Poesia extremamente despojada e densa, de uma
intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar,
é bem a de um oficiante das trevas, dessas trevas que tão terrivelmente cobrem
a vida e o mundo. Nos seus ritmos curtos e sincopados, sob os quais todavia
flui oculta uma simplicidade quase sentimental, esta poesia significa, como
poucas das recentes, uma fulgurante definição do exílio português, no que ele
tem de amargo e de frustrado, como no que, nele, resiste a tudo e mesmo ao medo
que o verso tenha de sê-lo na boca do poeta, qual este disse num dos seus mais
belos poemas.