domingo, 13 de novembro de 2016

-- PASSAGENS, MUDANÇAS DE VOZ -- Manuel Gusmão




-- PASSAGENS, MUDANÇAS DE VOZ --

Lisboa, 2 de janeiro de 1950

para o José Guilherme
o Daniel e o Pedro

«Era um homem alto e forte.
De origem camponesa, nasceu em Murça,
por trás dos montes. Era um homem encorpado
como imaginamos os camponeses».

Mas a fotografia policial do cadáver
mostra a redução absoluta do corpo e alma
a um corpo morto insuportável magríssimo
à pele que é uma película de terra
sobre os ossos os terríveis ossos aguçados da bacia
os dentes superiores visíveis porque se arrepanharam o lábio a pele
e aberta ficou a boca: fome exausta e estancada do humano uivo –
os assassinos nem sequer lha fecharam.

Mataram-no: sob a violência, da fome de outra vida
ele fez a greve da fome e com isso foi morto.
Da morte que lhe faziam ele fez a sua –
não lhes deixou inteiro o poder de o matarem.
Mataram-no eles: mas não lhe puderam roubar a morte sua.
E essa esperava ele que em outros germinasse
como mais vida: a troca daquilo que há por essa vida outra.
Nós continuamos; dê por onde der
nós temos alguém à espera lá fora ou aqui
dentro do que em nós hesitante e ameaçado
é entretanto um canto.

Mantém-te perto dessa fotografia policial.
Por acidente ou fatalidade da burocracia
da morte a fotografia não poupa muito na imobilidade
em que o terror deflagra;
nem conta daquela morte o que entretanto
não pode ser esquecido nem contado.

«Aos 13 anos foi para o Brasil, andou pela construção civil,
pela metalurgia e com aquela estranha naturalidade
que em outros conhecemos tornou-se comunista.
Por isso foi expulso para Portugal, onde continuou.
Esteve preso em Angra do Heroísmo e no Tarrafal
por duas vezes. Uma vez em liberdade voltava.
Continuava. Obstinado. “Contumaz”»

Não o conheceste. Não te lembras. Só podes tentar recordar.
Não. Só podes inventar que recordas.
Rememoras contra a amnésia, a asfixia, o crime vulgar.
Não estavas lá. Não podes ser testemunha disso.
Não podes fazer de anjo que anuncia
nem de anjo que redime. Não podes
ir buscá-lo.
Não dirás sequer o seu nome
porque isso apagaria o que nele foi mais
do que um nome.
Chamaram-lhe António, mas tinha outros.
E entre tais nomes ele ia acontecendo
o acontecer que nenhuma história contém.
Quantos sabem hoje o nome dele, ou o de outros?

Quilómetros e quilómetros a pé ou rodando os raios
da pesada bicicleta intensa, ele tecia e desdobrava
sob o imenso e noturno céu do mundo, a pequena noite
de um mapa de pequenos brilhos, vagos lumes
entre os seus, os nossos antes de nós; ele fazia os fios
dos caminhos por onde em perigo seguia; e as palavras
que dizia ou que escritas trazia ouviam e
reuniam aqueles que a vida fazem insubmissa.
Dizem-te que por vezes passava a noite ao relento.
Que até levava uma manta; deitava-se no chão da terra
confiante nela e na noite que o cobria, com estrelas ou não.
Não podia ser assim, era um risco que corria.
Mas assim fazia.

Imaginas que deitado no chão ele era uma árvore
cujos ramos cresciam dentro da noite
uma árvore que desdobraria a noite que o acolhia
e todo o vivo respirava brandamente no seu sono de vivo.
Deitado na terra como uma árvore de pé
ele estendia os seus ramos de humano intenso.
Um humano, sabes? – pode ser uma floresta.
E as florestas convém à terra e à sua noite.
Como ao peso com que a sombra desce do céu.

Quando acordava sucedia que a manhã era primeiro
aquilo que lhe permitia ver o que o tocava e ele com as mãos
tocava: grãos de terra que respiravam uma pequena névoa;
plantas e gravetos que lhe faziam uma sombra nos olhos
e depois parecia que iam cintilar; pequenos bichos de que não
sabia os nomes todos; pequenas pedras que tinham nascido
de outras em outros lugares e ali se reuniam por acaso.

Não deves usar as palavras poucas que dele conheces escritas.
Por exemplo: ele escreveu:
«Dores, insónias, fome, agonias,
tudo tenho sofrido nestes últimos sete meses». Acaba aqui.
Sobretudo não deves dizer como escreveu ele a última carta
cerra os dentes sobre tal coisa, prende a língua,
esconde as tuas mãos.
Inventa. Terás de inventar
mas mantém-te perto da sua morte escrevendo.
O tempo apagará essa escrita no papel que se desfaz.
É também por isso que escreves o caminho
no caminho.

A morte dele não apaga nenhuma outra.
Não apaga o sem preço do sangue
que alaga o século dos dois lados da fronteira inapagável.
Quando citas a sua memória tens na boca
o sabor do sangue.
Ele morreu sozinho e não morreu sozinho.
tentaste explicar e sabes que não consegues.
Alguém insiste: Ele deu a vida? A quê? A quem?
Não, não é assim que lá vais.
Repara: ele trocou a morte pela tua vinda.
Em verdade, ele trocou a vida por mais vida. Mas, escuta:
ele não morreu no lugar de ninguém e também por isso
não tens que esquecer as mortes dos outros e dos outros.
mas quando é a dele que agora dizes é uma fidelidade
que escolhes. Por ela estás a caminho, quase cego.

Mas de que podes tu falar quando falas
da fidelidade a um morto que nem sequer conheceste? E
porque metes nisto a tão frágil poesia, a tão vaga e
pura e livre invenção das antigas palavras
com que falamos hoje?
Não aprendeste nada com o que pensas saber
sobre as praias do tempo? O ritmo do vento fazendo
e desfazendo as dunas do deserto? a imagem ofuscante
que nas margens da página, da história, guardaria
o trémulo perfil do poema, abstrato risco
que, como um rascunho apagado e indelével
na parede dos subúrbios que irá ruir,
espera o futuro que não podes conhecer?

É que ela é vaga e densa, vagante e fixa como aquela
rosa; e livre, sim, mas não segura; mas não pura;
antes vai para a fonte que abre no tempo os tempos
e vai impura.
É que ela tem parte
na parte que do mundo nos cabe fazer
por voz, em fala.
O poema é quem responde ou ninguém…
ou talvez lhe possam responder aqueles que
de viva voz por si respondem. Sua ou deles,
ameaçada sempre será a resposta.

«Eu nada posso garantir-te.
Envelheço e não sei já o que sabia.
Espero o futuro como quem sabe que espera a morte
e contudo não a teme nem aceita».
O poema, esse aposta no escuro
que com ele alguém
virá usando a mesma língua noutra voz
e noutro corpo. Alguém dizendo:

Aquela fotografia não pode dizer o vivo
a sua voz que falhava e rouca ressoava
no corredor interminável onde havia
os postigos iluminados quatro celas quatro vigílias
e aquela voz esgotada. O seu grito
alucinava o silêncio, o incêndio da noite
a caminho do sol com aquele corpo dentro
ardendo ardendo até ao branco.

Sob as tempestades de neve nós continuamos
sobre a neve o rastro que arde.

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