sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Não esquecer o que somos

E SEREMOS

MALTÊS - Manuel da Fonseca


 
MALTÊS

I

Em Cerromaior nasci.

Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.


E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.

II

Veio a guarda com a lei
no cano das carabinas.


Cercaram-me num montado;
puseram joelho em terra;
gritaram que me rendesse
à lei dos caminho feitos.
Mas eu olhei-os de longe,
 o rosto apenas virado,
que só vi em meu redor
dez pobres ajoelhados
perante mim, seu senhor.

III

Gente chegou às janelas,
saíram homens à rua:
 – as mães chamaram os filhos,
bateram portas fechadas!

E eu, o desconhecido,
o vagabundo rasgado,
entrei o largo da vila
entre dez guardas armados;
– mais temido e mais amado
que o deus a que todos rezam.
– Que nunca mulher alguma
se rendeu mais a um homem
que a moça do rosto claro
ao cruzar os olhos pretos
com o meu olhar de rei!

IV
 
…E vendo que eu lhes fugia
assim de altiva maneira
à sua lei decorada,
lá,
longe do sol e da vida,
no fundo duma cadeia,
cheios de raiva me bateram.

Inanimado,
tombei por fim a um canto.

E enquanto eles redobravam
sobre o meu corpo tombado,
adormecido
eu descansava
de tão longa caminhada!…




Manuel da Fonseca



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

ANDEI MUITOS CAMINHOS - António Machado

ANDEI MUITOS CAMINHOS

Andei muitos caminhos,
abri muitas veredas;
Naveguei em cem mares,
e atraquei em cem ribeiras.

Em todas as partes vi
caravanas de tristeza,
soberbos e melancólicos
borrachos de sombra negra,

E pedantes por trás dos panos
que olham, calam, e pensam
que sabem, porque não bebem
o vinho das tabernas.

Diabólicas pessoas que caminham
e vai apestando a terra…

E em todas partes vi
pessoas que dançam ou jogam,
quando podem, e laboram
seus quatro palmos de terra.

Nunca, chegam a um lugar,
perguntam aonde chegam.
Quando caminham, cavalgam
nos lombos de mula velha,

E não conhecem a pressa
nem ainda nos dias de festa.
Onde há vinho, bebem vinho;
onde não há vinho, água fresca.

São boas gentes que vivem,
laboram, passam e sonham,
e em um dia como tantos,
descansam debaixo da terra.

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Varina -Álvaro Feijó



Varina

Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— "Quem merca os camarões" ...
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar...
A Senhora dAgonia...
A quentura de Agosto...
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta...
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro...
e. . . "até mais ver" ...
Vês! Eu sei a tua história...
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.


terça-feira, 27 de novembro de 2018

SOBRE UMA FOTOGRAFIA - Bernardo Bertolucci


SOBRE UMA FOTOGRAFIA

Que vontade de fugir de Roma,
sem dizer nada à família
nem aos que me saúdam no caminho,
se descubro que coisa muda
sobre as gotas e na pupila
de minha mãe – como brilha
e arde a figura sentada,
feliz e obediente, da morena,
jovem na fotografia!

Perdoa-me, se sabes amar a vileza
de teu filho, decidido a sofrer
em voz alta, para que o escutem.


Bernardo Bertolucci

“Sem partido não se pode gerir a sociedade em que estamos habituados a viver.”
 Bernardo Bertolucci