sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Poema-Bilhete - Geir Campos

Poema-Bilhete

Amigo, este meu canto não é manso
nem de manso cantar seria a hora.
Reviro as páginas da História e vejo
que, se em cada uma existe alguém que chora,
razão de pranto mais que em todas elas
sobeja na que se rascunha agora:
com cães de armas por toda parte à espreita,
entre miras vacila e se apavora
o gado humano, sem saber se a luz
que se desdobra no horizonte é mais
reflexo de tarde ou clarão de aurora
ou mais fogo de bomba maquinada
por um génio às avessas que decora
o alfabeto do inferno e que, por ele
bem soletrando a morte, a vida ignora...

Sabendo e amando a vida, o verso enrija-se
e o canto é como quem finca uma escora
contra o a-b-c do diabo, contra o cão
do gatilho suspenso, contra o fogo
que no céu se desdobre e ali não seja
reflexo de tarde ou clarão de aurora.


Publicado no livro Operário do canto (1959).


Sem comentários: