quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Deus de violência - Cândido Portinari

Deus de violência

Estou com vida mas estive sempre à espera
De viver. Não sei por que estou isolado e só
Sentimos a inutilidade em existir. Se houver Deus
É de violência; nos deixa apodrecer ainda caminhando
É o dono de moléstias pavorosas. Alimenta
As dores dos recém-nascidos, do homem, da mulher,
Do velho e do cão. Há repetição de ruídos
Furacões, lamento de crianças com fome
Andamos, mal-encarados, e com o pensamento
Em enganar alguém. Desconfiados, temerosos
Das doenças incuráveis. Ignoramos estarmos
Já inscritos numa delas.


Quem seriam aqueles três rasgados
E sem cara? Vinham a cavalo.
Mais próximos não davam impressão de gente,
Mas de três volumes se movendo como bandeiras
Esfarrapadas. Rentes a mim, estenderam
algo como uns braços, com vestígios
de dedos, segurando uma caneca de folha.
Eram restos de três criaturas
Espaventosas carregando a lepra.
Vinham das bandas do Triângulo. Os sons
que emitiam eram como
Sombras de palavras.
Meu pai chamou-os
para o almoço. Sentaram-se à nossa mesa.
Nós crianças olhávamos intimidados
Depois confraternizados. Quando se foram,
perguntamos: - Que santos
são aqueles?


Os cavalos dos leprosos se parecem com eles.
Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar
Mortiço e desacorçoado.
Homem e cavalo
Vinham vagarosamente
De porta em porta. Teriam
A mesma doença?
Arrepiados da cabeça aos pés,
O sol os acariciava, e se moviam lentamente.
Nas noites de treva
O cavalo era o guia, só ele enxergava.
Eram como dois irmãos. O alimento,
Repartido e o descanso também...
Seriam dois reis?


Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos
Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos
Doloridos como fagulhas de carvão aceso


Corpos disformes, uns panos sujos,
Rasgados e sem cor, dependurados
Homens de enorme ventre bojudo
Mulheres com trouxas caídas para o lado


Pançudas, carregando ao colo um garoto
Choramingando, remelento
Mocinhas de peito duro e vestido roto
Velhas trôpegas marcadas pelo tempo


Olhos de catarata e pés informes
Aos velhos cegos agarradas
Pés inchados enormes
Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas


No rumor monótono das alparcatas
Há uma pausa, cai no pó
A mulher que carregava uma lata
De água! Só há umas gotas – Dá uma só


Não vai arribar. É melhor o marido
E os filhos ficarem. Nós vamos andando
Temos muito que andar neste chão batido
As secas vão a morte semeando.


No povoado sonhando
Viu o mar. Um dia o
Veria de verdade.
Passaram alguns dezembros.


Chegou à praia
Sem saber se era dia ou noite,
Distante dali deixara o
Campo, os animais e as flores.


Faziam parte de sua
Vida de menino pobre.
Lembrava-se da chuva do rio e dos pássaros.
Não pôde ver o mar: estava cego.


Mulheres com dor-d’olhos cobertas de trapos e
Sempre grávidas. Saindo dos panos há uma cara
Canelas finas e feridentas. Desde o seu nascimento
Penam. Noite e dia trabalham. Muitas já cegas,
Os filhos tracomosos e opilados.


As mocinhas de dezesseis anos
Só trazem na boca uns cacos de
Dentes. São assombrações. Espantam as águas dos
Rios e o arvoredo. Morrem trabalhando e
Ressurgirão no azul do céu vestidas de Lua.


Faltam-me as pernas.
Tenho um braço e meus
Olhos são fracos. O coração palpitando
Sempre.


Vim da terra vermelha e do
Cafezal.


As almas penadas, os brejos e as matas virgens
Acompanham-me como o espantalho,
Que é meu auto-retrato.


Todas as coisas
Frágeis e pobres
Se parecem comigo.


Minha pupila estará cheia
De tanta gente? Mas está vazia...
Fantasmas movendo-se
Sem existência.


Levarei meus olhos fugindo
Procuro os escondidos inutilmente...
Na mediocridade – nem
Uma quinta-feira de folga...


Trabalham vestindo-os e o
Vento os move.
Não entendem. Tempo gasto
À-toa à-toa.


Se soubesse conversar com a erva
Macia. Sem jeito piso-a esmagando-a
Impedido de um encontro desejado.


Agitam-se meus cabelos
Correndo. Meus braços vão para
O sul e as pernas para o norte
Boneco Carlitiano.


Faltam-me as lágrimas e o
Entendimento. Não vejo a lua e
Nem o sol ao meio-dia...
Eu não existo talvez.


Me darão a morte em noite de
Lua? Mas bom seria
Sem ninguém perto de mim.


Portinari Poemas
Iniciativa: EPTV – Emissoras Pioneiras de Televisão
Realização: Projeto Portinari
1999


terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A Moça Tomando Café - Cassiano Ricardo

A Moça Tomando Café

Num salão de Paris
a linda moça, de olhar gris,
toma café.
Moça feliz.


Mas a moça não sabe, por quem é,
que há um mar azul, antes da sua xícara de café;
e que há um navio longo antes do mar azul…
E que antes do navio longo há uma terra do Sul;
e antes da terra um porto, em contínuo vaivém,
com guindastes roncando na boca do trem
e botando letreiros nas costas do mar…
E antes do porto um trem madrugador
sobe-desce da serra a gritar, sem parar,
nas carretilhas que zunem de dor…
E antes da serra está o relógio da estação…
Tudo ofegante como um coração
que está sempre chegando, e palpitando assim.
E antes dessa estação se estende o cafezal.
E antes do cafezal está o homem, por fim,
que derrubou sozinho a floresta brutal.
O homem sujo de terra, o lavrador
que dorme rico, a plantação branca de flor,
e acorda pobre no outro dia… (não faz mal)
com a geada negra que queimou o cafezal.
A riqueza é uma noiva, que fazer?
que promete e que falta sem querer…
Chega a vestir-se assim, enfeitada de flor,
na noite branca, que é o seu véu nupcial,
mas vem o sol, queima-lhe o véu,
e a conduz loucamente para o céu
arrancando-a das mãos do lavrador.

Quedê o sertão daqui?
Lavrador derrubou.
Quedê o lavrador?
Está plantando café.
Quedê o café?
Moça bebeu.
Mas a moça, onde está?
Está em Paris.
Moça feliz.

  

A publicação de poemas sobre ângulos do mundo trabalho e sobre o valor da vida das trabalhadoras e dos trabalhadores constitui uma das expressões da luta pelo TRABALHO DIGNO E SAUDÁVEL para todos. Poemas e outras obras de arte fazem parte de nossas armas! “A arte é uma rebelião contra o destino”, segundo André Malraux (1901-1976).

domingo, 27 de janeiro de 2019

Vós que viveis tranquilos - Primo Levi

Vós que viveis tranquilos

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelo e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entrave,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Tradução de Simonetta Cabrita Neto

Primo Levi (Itália 1919 – 1987)
Judeu de origem italiana, Primo Levi participou da resistência anti-fascista na Itália. Capturado pela milícia fascista, acabou prisioneiro em Fossoli, sendo depois transferido para Auschwitz, de onde foi libertado pelo Exército Vermelho. Dedicou-se à memorialística, mas também à prosa de ficção e poesia. O poema aqui publicado está incluído no livro
Se Isto É um Homem, que o autor terminou de escrever em 1946, sendo este seu principal livro de memórias.


sábado, 26 de janeiro de 2019

Poemas Do Cárcere - Ho Chi Minh


Poemas Do Cárcere - Ho Chi Minh

A Poesia na Revolução

“Mais a luta endurece, mais os vietnamitas necessitam de poesia. Necessitam da poesia como de um pouco de arroz”.
Aproxima-se a primavera e componho este poema para meus compatriotas do país inteiro.

Que combatam a agressão americana
E novas vitórias
Como flores desabrochem.

O estadista, que formulou nesta saudação para o Ano Novo de 1967, é o mesmo guerrilheiro que nas florestas de Cao Bang, escrevia:

Vozes das fontes claras: canção longínqua.
A lua penetra a árvore secular.
O vento penetra as flores.
A paisagem noturna desenha-se como um quadro.
O homem dorme.
Ele pensa e repensa em sua pátria, angustiado.
Nosso país atravessa duros momentos.
Precisamos meditar em centenas e milhares de tarefas.
Os negócios de Estados, irmos, apoiam-se sobre vossos esforços,
Esforços maiores ainda.
Maior vitória.

Eu leio e o pássaro das florestas vem gemer diante de minha porta.
Escrevo minhas ideias sobre o livro
E as flores das montanhas miram-se no tinteiro.
Chegam-me notícias de vitórias.
O mensageiro esta para vir.
Recordo-me de ti e lhe ofereço estes versos.

POEMAS DO CÁRCERE
(CARNET DE PRISON- traduit par Phan Nhuam)

Autor: Ho Chi Minh
Tradução de Coema Simões e Moniz Bandeira
Gráfica Editora Laermmer S.A
Rio de Janeiro – Guanabara 1968

O conteúdo dos Poemas do Cárcere traduz, assim, toda a filosofia de comportamento não só de Ho Chi Minh, mas, do povo vietnamita, que combate e ele simboliza.

A poesia integra o cotidiano do Vietnam.

Ho Chi Minh, frequentemente, escreve mensagem ou termina seus discursos em versos. A poesia, nele, não representa uma forma de fugir a vida, mas uma forma de enfrenta-la.

Os Poemas do Cárcere mostram que nada é mais precioso para ele do que a independência e a dignidade. E, pela sua voz, fala todo o povo do Vietnam.