I
Carta a Miguel Otero Silva,
em Caracas (1948)
Um amigo me trouxe a tua carta escrita
com palavras invisíveis, sobre sua roupa, em seus
olhos.
Como és alegre, Miguel, como somos alegres!
Nada resta num mundo de úlceras estucadas
senão nós, indefinidamente alegres.
Vejo passar o corvo e não me pode fazer mal.
Tu observas o escorpião e limpas a tua guitarra.
Vivemos entre as feras, cantando, e quando tocamos
um homem, a matéria de alguém em quem acreditávamos,
e este homem se desmorona como um pastel podre,
tu em teu venezuelano património recolhes
o que pode salvar-se, enquanto eu defendo
a brasa da vida.
Que alegria, Miguel!
Me perguntarás onde estou? Te contarei
- dando só detalhes úteis ao governo –
que nesta costa cheia de pedras selvagens
unem-se o mar e o campo, ondas e pinheiros,
águias e procelárias, espumas e prados.
Já viste de muito perto e o dia todo
como voam os pássaros do mar? É como
se levassem as cartas do mundo a seus destinos.
Passam os alcatrazes como barcos do vento,
outras aves que voam como flechas e trazem
as mensagens dos reis defuntos, dos príncipes
enterrados com fios de turquesa nas costas andinas,
e as gaivotas feitas de brancura redonda,
que esquecem continuamente as suas mensagens.
Como é azul a vida, Miguel, quando pusemos nela
amor e luta, palavras que são o pão e o vinho,
palavras que eles ainda não podem desonrar,
porque nós saímos para a rua de escopeta e cantos.
Eles estão perdidos conosco, Miguel.
Que podem fazer senão matar-nos, e ainda assim
não lhes é um bom negócio, só podem
tratar de alugar um andar diante de nós e seguir-nos
para aprender a rir e a chorar como nós.
Quando eu escrevia versos de amor, que me brotavam
de todos os lados, e me morria de tristeza,
errante, abandonado, roendo o alfabeto,
me diziam: “Como és grande, ó Teócrito!”
Eu não sou Teócrito: tomei a vida,
me pus diante dela, dei-lhe beijos até vencê-la,
e logo me fui pelas vielas das minas
para ver como viviam outros homens.
E quando saí com as mãos manchadas de imundícies e
dores,
eu as levantei a mostrá-las nas cordas de ouro,
e disse: “Eu não compartilho do crime”.
Tossiram, ficaram muito desgostosos, me cortaram o
cumprimento,
deixaram de me chamar de Teócrito, e acabaram
por me insultar e mandar toda a polícia para prender-me,
porque eu não continuava preocupado exclusivamente de assuntos metafísicos.
Mas eu tinha conquistado a alegria.
Desde então me levantei para ler as cartas
que trazem as aves do mar de tão longe,
cartas que chegam molhadas, mensagens que pouco a
pouco
vou traduzindo com lentidão e segurança: sou
meticuloso
como um engenheiro neste estranho ofício.
E saio de repente à janela. É um quadrado
de transparência, é pura a distância
de ervas e penhascos, e assim vou trabalhando
entre as coisas que amo: ondas, pedras, vespas,
com uma embriagadora felicidade marinha.
Mas ninguém gosta de que estejamos alegres, a ti te incumbiram
de um papel bonachão: “Mas não exagere, não se
preocupe”,
e a mim me quiseram espetar num insectário, entre as lágrimas,
para que estas me afogassem e eles pudessem fazer seus
discursos
[em meu túmulo.
Eu me lembro que um dia no pampa arenoso
do salitre, havia quinhentos homens
em greve. Era a tarde abrasadora
de Tarapacá. E quando os rostos haviam recolhido
toda a areia e o exangue sol seco do deserto,
vi chegar a meu coração, como uma taça de ódio,
a velha melancolia. Naquela hora de crime,
na desolação das salinas, nesse minuto débil
da luta, em que poderíamos ter sido vencidos,
uma menina pequenina e pálida chegada das minas
disse com uma voz valente em que se juntavam o cristal
e o aço
um poema teu, um velho poema teu que roda entre os
olhos enrugados
de todos os operários e lavradores de minha pátria, da
América.
E aquele pedaço de teu canto refulgiu de repente
em minha boca como uma flor purpúrea
e desceu pelo meu sangue, enchendo-o de novo
com uma alegria transbordante nascida de teu canto.
E eu pensei não só em ti, mas em tua Venezuela amarga.
Há anos, vi um estudante que tinha nos tornozelos
o sinal das cadeias que um general lhe havia imposto,
e me contou como os acorrentados trabalhavam nos
caminhos
e os calabouços onde a gente se perdia. Porque assim
foi a nossa América:
uma planura com rios devoradores e constelações
de mariposas (em alguns lugares, as esmeraldas são
espessas como maçãs),
porém sempre ao longo da noite e dos rios,
há tornozelos que sangram, antes perto do petróleo,
hoje perto do nitrato, em Pisagua, onde um déspota
sujo
enterrou a flor de minha pátria para que morra, e ele
[possa comerciar com os ossos.
Por isso cantas, por isso, para que a América
desonrada e ferida
faça tremer as suas mariposas e recolha suas
esmeraldas
sem o espantoso sangue do castigo coagulado
nas mãos dos verdugos e dos mercadores.
Eu compreendi como estarias alegre, perto do Orenoco,
cantando,
certamente, ou então comprando vinho para a tua casa,
ocupando o teu posto na luta e na alegria,
largo de ombros, como são os poetas deste tempo,
- com roupas claras e sapatos de uso para caminhar.
Desde então, fiquei pensando em escrever-te algum dia,
e quando Guillén chegou, todo cheio de histórias tuas
que se desprendiam de toda a roupa
e que sob as castanheiras de minha casa se derramaram,
me disse: “Agora”, nem assim comecei a escrever-te.
Mas hoje foi demais: passou pela minha janela
não apenas uma ave do mar, mas milhares,
e recolhi as cartas que ninguém lê e que elas levam
pelas praias do mundo, até perdê-las.
E aí, em cada uma lia palavras tuas
e eram como as que eu escrevo e sonho e canto,
e aí decidi enviar-te esta carta, que aqui termino
para olhar pela janela o mundo que nos pertence.
Pablo Neruda
(Canto geral)
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