quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Teoria da narrativa familiar - Luís Filipe Parrado

Teoria da narrativa familiar.

Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

Luís Filipe Parrado

Luís Filipe Parrado
Entre a carne e o osso, Língua Morta, Lisboa, 2012.
LUÍS FILIPE PARRADO nasceu no Seixal em 1968. É professor do ensino secundário. Acaba de publicar um excelente primeiro livro de poemas, “Entre a carne e o osso”, na editora Língua Morta, de Lisboa. Trata-se de um surpreendente livro de poesia contemporânea, que percorre em tom biográfico e confessional, as primeiras décadas do autor, através da construção de uma personna literária que nos fala de dentro da vida, de dentro dos dias, com o distanciamento, porém, suficiente para evitar o derramamento lírico. A ironia, o uso da sinédoque e da metonímia, algum humor, servidos por entre um lírismo áspero, seco, contido, bem como um certo tom disfórico e desiludido na conclusão dos poemas são as principais armas de que o poeta se serve para dar corpo a uma original poesia figurativa que faz a transição, na perfeição, entre a lírica portuguesa surgida nos anos 90 e a poesia mais recente, surgida depois de 2000, quer pelos temas que escolhe (o espaço da família e da cidade, as coisas enquanto naturezas-mortas, enquanto objectos solitários), quer pelo tom terno mas dorido, desencantado mas indesistente. Um hino à tradição, ao ofício, à originalidade.

1 comentário:

Justine disse...

gostei mesmo desta teoria familiar - igual a tantas outras!