terça-feira, 14 de julho de 2020

A POOR YOUNG SHEPHERD - Adília Lopes



A POOR YOUNG SHEPHERD

Fui uma menina demasiado protegida
a minha mãe arrancava o cochicho
aos bonecos de chiar
para eu não o engolir
eu apertava os bonecos de chiar
os bonecos de chiar não faziam barulho
deitavam ar e era tudo
aos gatos de peluche arrancava os bigodes
para eu não me picar
às meninas que vinham brincar comigo
cortava as unhas rentes
para não me arranharem
se estava na aldeia
tapava-me os ouvidos com bolas de cera
para eu não poder ouvir os morteiros
da festa de Santa Úrsula
aos livros da Condessa de Ségur
arrancou as páginas
em que as crianças são chicoteadas
com vergastas pelas madrastas
e aquelas em que o Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
por ela lhe ter feito um arranhão
se me lia contos de fadas
saltava por cima da maçã envenenada da Branca de Neve
e do fuso envenenado da Bela Adormecida
cresci completamente vestida de algodão
porque achava que a lã e as fazendas
me picavam
queria muito ir à praia
mas a minha mãe tinha medo que eu me afogasse
deu-me um búzio
para eu fazer uma ideia
do que era o barulho do mar
e deixou-me chapinhar na banheira
mais tempo do que era costume
também a Veneza não me deixou ir
por dizer que cheirava mal
deu-me uma colecção de estampas
e uma gôndola em miniatura
mas não tão pequena
que se pudesse engolir
da primeira vez que saí de casa
fui atingida por uma bala perdida
em tempos de paz
que duraram pouco
quando ouvi na rádio as rajadas da metralhadora
que certa facção tinha postado
nos estúdios das emissoras regionais
para fingir que havia uma revolução na capital
e assim justificar os fuzilamentos
do dia seguinte
acreditei que essa facção
agia por motivos maternais
ainda hoje as páginas que mais me agradam
são aquelas em que Paulo se roja nos espinhos
para evitar que Sofia seja castigada
e se falo ao telefone com um namorado
tenho medo de um beijinho como de uma abelha.


(In: Obra. Lisboa: Mariposa Azual, 2000. pp. 114-115)

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