EUROPA
I
Europa,
sonho futuro!
Europa,
manhã por vir,
fronteiras
sem cães de guarda,
nações com
seu riso franco
abertas de
par em par!
Europa sem
misérias arrastando seus andrajos,
Virás um
dia? virá o dia
em que
renasças purificada?
Serás um dia
o lar comum dos que nasceram
no teu solo
devastado?
Saberás
renascer, Fénix, das cinzas
em que arda
enfim, falsa grandeza,
a glória que
teus povos se sonharam
– cada um
para si te querendo toda?
Europa,
sonho futuro,
se algum dia
há-de ser!
Europa que
não soubeste
ouvir do
fundo dos tempos
a voz na
treva clamando
que tua
grandeza não era
só do
espírito seres pródiga
se do pão
eras avara!
Tua grandeza
a fizeram
os que nunca
perguntaram
a raça por
quem serviam.
Tua glória a
ganharam
mãos que
livres modelaram
teu corpo
livre de algemas
num sonho
sempre a alcançar!
Europa, ó
mundo a criar!
Europa, ó
sonho por vir,
enquanto à
terra não desçam
as vozes que
já moldaram
tua figura
ideal,
Europa,
sonho incriado,
até ao dia
em que desça
teu espírito
sobre as águas!
Europa sem
misérias arrastando seus andrajos,
virás um
dia? virá o dia
em que
renasças purificada?
Serás um dia
o lar comum dos que nasceram
no teu solo
devastado?
Renascerás,
Fénix, das cinzas
do teu corpo
dividido?
Europa, tu
virás só quando entre as nações
o ódio não
tiver a última palavra,
o ódio não
guiar a mão avara,
à mão não
der alento o cavo som de enterro
dos cofres
digerindo o sangue do rebanho
– e do
rebanho morto, enfim, à luz do dia,
o homem que
sonhaste, Europa, seja vida!
II
Ó morta
civilização!
Teu sangue
podre, nunca mais!
Cadáver hirto,
ressequido,
à cova, à
cova!
Teu canto
novo, esse sim!
Purificado,
teu nome,
Europa,
o mal que
foste, redimido,
o bem que
deste,
repartido!
Aí vai o
cadáver enfeitado de discursos,
florindo em
chaga, em pus, em nojo…
Cadáver enfeitado
de guerras de fronteiras,
ficções para
servir o sonho de violência,
máscara de
ideal cobrindo velhas raivas…
Vai, cadáver
de crimes enfeitado,
que os
coveiros, sem descanso,
acham pouca
toda a terra,
nenhum
sangue já lhes chega!
Sobre o
cadáver dançam
teus coveiros
sua dança.
Corvos de
negro augúrio
chupam teu
sangue de desgraça.
Haja mais
sangue, mais dançam!
E tu levada,
tu dançando,
os passos do
teu bailado
funerário!
Mas do
sangue nascerás,
ou nunca
mais, Europa do porvir!
E a mão que te detenha
à beira do abismo?
Do sangue nascerá!
E braços que defendam
teu dia de amanhã?
Do sangue nascerão!
O sangue ensinará
— ou nova escravidão
maior há-de enlutar
teus campos semeados
de forcas e tiranos.
De sangue banharás
teu corpo atormentado
e, Fénix, viverás!
III
Na erma solidão glacial da treva
os que não morreram velam.
Em vagas sucessivas de descargas
A morte ceifou os nossos irmãos.
O medo ronda,
o ódio espreita.
Todos os homens estão sozinhos.
A madrugada ainda virá?
Vão caindo um a um na luta sem
trincheiras,
e a noite parece que não terá
nunca madrugada,
mas cada gota de sangue é agora semente
de revolta,
da revolta que varrerá da face da terra
os sacerdotes sinistros do terror.
A revolta a florir em esperança
dos braços e das bocas que ficaram...
A traição ronda,
A morte espreita.
Uma comoção de bandeiras ao vento...
Clarins de aurora, ao longe...
Os que não morreram velam.
IV
Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava
matematicamente previsto,
ah, não me venha com teorias!
eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas
faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas
uma ínfima,
uma insignificante parcela de tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador
de estrada,
— mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo
isto:
esta pasta ensanguentada a que
reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa e ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá
alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma
coisa...
Deixai-me chorar — e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha
de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso
silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos
nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco de
sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os
torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos
e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
— sim, por um momento seremos a dor de
tudo isto...
Eu não sei porque me caem lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro
de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na
guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo
isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não guerra à porta,
— eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei — quem chora em
nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de
conhecer os seus meandros:
As ruas são ruas com gente e automóveis,
Não há sereias a gritar pavores
irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já
havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
Apesara da Europa à nossa volta, exangue
e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar
que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui
enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e
uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da
madrugada...
V
A música era linda...
vinha do rádio, meiga, mansa,
macia como um corpo quente de mulher...
era doce, cariciosa e lânguida...
Mas eu tinha ainda nos ouvidos,
como um clamor de milhões de bocas:
“No campo de concentração hoje ocupado
pelas nossas tropas
os alemães queimaram milhares de vivos
num formo crematório...
Nas cubatas, os mortos misturavam-se com
os moribundos...
O sargento S.S. não pôde recordar
quantos homens tinha morto...
Os mortos apodrecem aos montes, e os
vivos
arrancam-lhes as roupas
para as fogueiras em que ao lado se
aquecem...
EM MUITOS CADÁVERES ENCONTROU-SE UM CORTE LONGITUDINAL:
ERAM OS VIVOS QUE TINHAM TIRADO AOS MORTOS O FÍGADO
E OS RINS PARA COMER,
A ÚNICA CARNE QUE AINDA RESTAVA NOS CADÁVERES...”
E lembro-me de repente dum filme muito
antigo
Em que o criminoso perguntava:
“De quoi est fait un homme, monsieur le
comissaire?”
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem viu um abismo e não lhe sabe o
fundo...
De
quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? Que
tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como
os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens
aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da
degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e
esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das
prisões,
a ordem com as câmaras de tortura...
E depois a música vem, cariciosa e
lenta,
a julgar que apaga a ignomínia que
lançaram sobre a terra!
A julgar que esqueceremos a abjeção dos
que sonharam
apagar da terra a insubmissão do homem
livre!
Não — nem cárceres, nem deportações, nem
represálias, nem torturas
acabarão jamais com a insubmissão do
homem livre,
do homem livre nas cadeias, cantando nas
torturas,
porque vê diante de si os irmãos que
estão lutando,
que hão-se-cair, para outros sempre se
erguerem,
clamando em vozes sempre novas
QUE O HOMEM NÃO SE HÁ-DE SUBMETER À
VIOLÊNCIA!
Homens sem partido e de todos os
partidos,
que nasceram com a revolta porque não
lhes vale de
nada viver para serem escravos,
homens sem partido e de todos os
partidos —, menos todos quantos
só sabem dizer ORDEM! e clamar
VIOLÊNCIA!
os que pedem sangue porque são
sanguinários, sim,
mas também todos os que nunca souberam
querer nada,
os que dizem “Não é possível que se
torturem os presos políticos”,
os que não podem acreditar
porque não querem ser incomodados pela
pestilência
dos crimes cometidos para eles
— para eles continuarem a acreditar que
a ORDEM não é
apenas a mordaça
sobre as bocas livres que hão-de gritar
até ao fim do mundo
QUE SÓ O HOMEM LIVRE É DIGNO DE SER
HOMEM!
(Europa,
1944-45)
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