PSICOSE
Não vou sair
daqui.
Nada de obrigações.
Hoje sou clandestino,
sou evadido das horas
e dos caminhos
de tudo.
Levantei-me cedo
para ver nascer
e morrer o sol
no fundo do horizonte.
Música no violino
do velho
(que é realmente cego,
por acaso).
Hoje não
tenho pressa para
nada
desta vida
ou sequer
da outra.
Vou deixar de olhar para o relógio
(de resto anda sempre por acertar)
e vou perder todos os comboios
certos ou
mesmo atrasados.
Vou ficar aqui a apanhar
este solzinho de Outono
acolhedor.
Tombam folhas
da música do violino.
Passam pessoas
apressadas
a cruzar em todos os sentidos,
com direcções únicas e certas
ou erradas (nada
tenho com isso).
Passam operários
sujos, costureiras,
corretores de bolsa, directores,
senhores obesos de automóvel,
senhoras muito bem vestidas,
senhoras muito bem senhoras,
marçanos, vendedores
de jornais,
pessoas honestas, pessoas
traidoras
(nada têm que dar-me conta dos seus actos),
pessoas pessoas
pessoas
numa parada de gestos,
numa parada de fatos,
numa parada de sentimentos,
numa parada de verdades,
numa parada de mentiras,
numa parada de sonhos,
numa parada de certezas,
para o grande
espectáculo do teatro quotidiano
com artistas
certos nos
seus verdadeiros papéis
certos ou
errados — isso é lá
com eles
(hoje fechei o coração ao sentimentalismo).
Música agitada
no violino do velho
Hoje não!
nem sequer
o almoço.
Que o ponham na mesa
e fiquem à espera
da minha presença física.
Que telefonem para
a polícia,
para os hospitais,
para a Morgue
a perguntar por mim.
(Nunca ninguém perguntou por
mim,
excepto eu, já se vê).
Que dêem todos
os meus sinais
(nunca serão completos
— serão mesmo
falsos,
posso garantir.
Além disso não
trago a gravata
branca.
Deitei-a fora e
abri o colarinho.
não me
podem descobrir pela
coleira).
Todos vão
para suas casas:
costureiras, operários,
co1egiais, professores,
empregados, marçanos,
«manicures», polícias,
toda a gente
toda a gente
toda a gente
— e até os cães
vadios
No doce regresso ao lar.
Música de família
no violino do velho.
Saem e entram a barra
grandes navios.
Cai a noite e
vêm vultos.
E eu uma sombra
identificada com
a noite sem
lua.
Não irei sequer
bater à porta
dela
(por que hei-de ser sempre eu a ir ter com
ela?).
Que se pinte, solte os cabelos,
vista o «robe
de chambre» cor
de rosa,
transparente, decotado e sensual.
Ponha no corpo esbelto e moreno
perfumes de estranhos orientes
e aguarde que eu chegue amante
e desespere e chore, se quiser.
Hoje fico indiferente
à sua carne.
Música de amor
no violino do velho.
Não! ainda
não vou para casa.
Vou assistir agora a um grande espectáculo
de sombras do outro mundo,
ao grande
espectáculo sem encenação.
Há-de passar Rogogine
com Natacha Fílipovna morta
nos seus
braços.
Há-de passar Nero com incêndios nos olhos,
Otelo louco de vingança,
Hamlet declamando uma única
frase:
«To be or not to be»,
Ofélia cantando e morrendo flor,
Fernando Pessoa lendo em voz sonolenta
os seus
«Thirty five sonnets»,
Sá-Carneiro na sua
última casaca,
Voltaire em sinistras gargalhadas,
Fausto montado
numa vassoura de 2 cornos,
D. Quixote
correndo atrás dos moinhos
de vento,
Cleópatra com
uma víbora nos
seios,
Edgar Pöe e um corvo sinistro,
Byron de braço dado em 1800
com a linda
Margaret Parker,
Algernon Swinburne todo
vestido de fogo,
Lorca entre
«la guardia civil»,
Beethoven cheio
de música nos
cabelos,
Castro Alves e uma multidão
de escravos,
Dante seguindo Beatrice entre
nuvens.
Hão-de passar todos os grandes
amorosos,
todos os grandes
aventureiros,
todos os grandes
loucos
para a grande
peça trágico-cómico-dramática,
vestidos de todas as
cores,
falando todas as línguas,
tocando todas as músicas
─ numa confusão de loucura.
Música triste
e alegre,
lenta e vertiginosa
no violino do velho.
E depois, oh! depois, sim!
levantar-me-ei daqui.
Irei bater a todas as portas,
chamarei toda a
gente para a rua
(ninguém ficará
na cama:
nem velhos,
nem coxos,
nem cegos.
Ninguém!)
e farei as apresentações
na língua de Rimbaud:
Monsieur Castro — Monsieur Goethe.
Monsieur Silva — Monsieur Dostojevski.
Comment? Vous ne vous
comprenez pas?
Par1ez fort, plus fort! Críez! Criez!
Ah! hei-de místurá-Ios todos,
todos, todos
— numa confusão diabólica.
Chamarei todos
os velhos dos violinos
para o estranho
concerto sem partitura.
E depois, oh! depois, sim!
vou para casa e vou pôr-me à janela
para anunciar o primeiro e o último espectáculo
da peça sem autor,
o grande
espectáculo das marionettes humanas.
E haverá música
música
música
música
no violino do tempo.
Quebrarei a ampulheta
do tempo!
satírica
circulo de leitores
1974
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