sábado, 18 de julho de 2020

Da Profissão do Poeta - Geir Campos

 Da Profissão do Poeta

 

Da identificação profissional
      Operário do canto, me apresento
      sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
      minha alma limpa, a face descoberta,
      aberto o peito, e — expresso documento —
      a palavra conforme o pensamento.
Do contrato de trabalho
      Fui chamado a cantar e para tanto
      há um mar de som no búzio do meu canto.
      Embora a dor ilhada ou coletiva
      me doa, antes celebro as coisas belas
      que movem o sol e as demais estrelas
     — antigos temas que parecem novos
     e tão gratos ao meu e aos outros povos.
Da relação com vários ofícios
      Meu verso tine como prata boa
      pesando na confiança dos bancários;
      os empregados no comércio bem
      sabem como atender aos que encomendo
      e recomendo mais do que ninguém;
      aos que funcionam em telefonia
      com ou sem fio, rádio, a esses também
      sei dizer à distância ou de mais perto
      a cifra e o texto no minuto certo;
      para os músicos profissionais,
      sem castigar o timbre das palavras
      modulo frases quase musicais;
      para os operadores de cinema
      meu verso é filme bom que a luz não queima;
      trilho também as estradas de ferro
      e chego ao coração dos ferroviários
      como um trem sempre exato nos horários;
      às equipagens das embarcações
      de mares ou de lagos ou de rios
      meu verso fala doce e grave como
      doce e grave é a taboca dos navios;
      nos frigoríficos derrete o gelo
      da apatia, se é para derretê-lo,
      meu canto a circular nas serpentinas;
      à boca da escotilha ou nas esquinas
      do cais, o meu recado é força viva
      guindando a atenção dos homens da estiva;
      desço cantando aos subsolos e às minas
      onde outros operários desenterram
      o minério de suas artérias finas;
      a outros, que dão sua têmpera aos metais,
      meu canto ajuda feito um sopro a mais
      aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
      aos colegas que lidam nos jornais
      boas noticias dou e, mais do que isso,
      jeito de as repetir e divulgar
      quando o patrão quisera ser omisso;
      à gente miúda, pronta a ser maior,
      passo lições de um magistério puro
      e o que é dever escrevo a giz no muro;
      para os químicos sei fórmulas novas
      que os mártires elaboram nas covas…
      e a todos que trabalham vai assim
      meu canto sugerindo meio e fim.
Do horário do trabalho
      Marcadas as minhas horas de ofício,
      de dia em sombras pelo chão e à noite
      no rútilo diagrama das estrelas,
      só quem ama o trabalho sabe vê-las.
Dos períodos de descanso
      Seja domingo ou dia de semana,
      mais do que as horas neutras do repouso
      confortam-me os encargos rotineiros;
      meu descanso é confiar nos companheiros.
Do direito a férias
      Nunca me participam por escrito
      ou verbalmente os ócios que mereço
      mas sempre gozo bem o merecido:
      pois o ócio não é ofício pelo avesso?
      É quando fio o verso; depois teço.
Da remuneração das férias
      Em férias tenho a paga de saber
      lembrado o verso meu por quem o inspira;
      é como se outra mão tangesse a lira.
Do salário mínimo
      Laborando entro os pontos cardinais,
      de norte a sul, de leste a oeste, vou
      cobrando aqui e ali quanto me basta:
      o privilégio de seguir cantando.
      (Imposto é cuidar onde e como e quando.)
Do expediente noturno
      Trabalho à noite e sem revezamentos.
      Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
      sem se tornar com isso menos pura
      a voz sobe uma oitava na mistura.
Da segurança do trabalho
       Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
       canto. Perigo à vista, canto sempre;
       e é clara luz e um ar nunca viciado
       e sol no inverno e fresca no verão,
       meu canto, e sabe a flores se é de flores
       e a frutos se é de frutos a estação.
       Só não me esforço à luz artificial
      com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
      servindo-lhes por luz o que é penumbra;
      também quando o ar parece rarefeito
      a lira engasga, o verso perde o jeito.
Da higiene do trabalho
      Não canto onde não seja o sonho livre,
      onde não haja ouvidos limpos e almas
      afeitas a escutar sem preconceito.
      Para enganar o tempo ou distrair
      criaturas já de si tão mal atentas,
      não canto…
      Canto apenas quando dança,
      nos olhos dos que me ouvem, a esperança.
Da alteração de contrato etc.
      Meu ofício é cantando revelar
      a palavra que serve aos companheiros;
      mas se preciso for calar o canto
      e em fainas diferentes me aplicar
     unindo a outros meu braço prevenido,
     mais serviço que houver será servido.

Da Profissão do Poeta

A publicação de poemas sobre ângulos do mundo trabalho e sobre o valor da vida das trabalhadoras e dos trabalhadores constitui uma das expressões da luta pelo TRABALHO DIGNO E SAUDÁVEL para todos. Poemas e outras obras de arte fazem parte de nossas armas! “A arte é uma rebelião contra o destino”, segundo André Malraux (1901-1976).


Sem comentários: