AUTOCRÍTICA
Ninguém ma pediu e já não está na moda,
pelo menos aquela pressurosa contrição
feita com cálculo e unção, aquela hipócrita
autoflagelação despudorada,
mas já é tempo (para mim) de deitar contas
ao verso e ao seu reverso, de mostrar a língua
a esse médico de quem tenho um pouco,
para ver como vai o foro íntimo
e, por consequência, o verso público.
*
«Nado e criado em Lisboa...» era um começo
não autocrítico, mas autobiográfico.
Sei muito bem que a biografia
explica muita coisa (até a azia!)
mas para quê esquadrinhar os anos
(joguei berlinde, joguei pião e juro aqui
que nunca o fiz para os americanos!)
à cata da raiz, se o que vivi,
para o mal ou para o bem, está aqui?
«Nado e criado em Lisboa...»: rejeitado por
excessivamente circunloquial.
(Comecemos sem mais delongas, prima,
ó volta e meia prima pobre, rima,
que a questão é simples: a poesia
dum tal…)
*
Dizem que me junqueiro, que me tolentino
o até que me paulino,
que tenho tudo e todos no ouvido
e não sou nada original.
Sim senhores, tem visos de verdade!
Serei eu, meu Deus, um ser reminiscente,
um desses semblantes ante os quais manda a prudência
que se pergunte ao botão antes de mais:
— Onde é que eu já vi este tratante?
*
Se pensar bem, o Junqueiro não me diz lá grande coisa.
O seu anticlericalismo fica-se pela batina;
o seu verso é tribunício e eu gosto da surdina
(ou do simulacro de estentor quando ele ajuda à crítica).
O 5 de Outubro já veio e já se foi,
mas não é a lata-de-trovões junqueiriana
que estamos a pedir na circunstância épica
que se aprò... que se aprò... que se aproxima.
Liguei sempre ao Junqueiro (sei porquê)
a conversa de advogado e a conversa de barbeiro.
Um tio advogado recitou-mo quando eu tinha treze anos
e não era mudo e só na rocha de granito;
um barbeiro anarquista, que me fazia a barba
com a estropiada mão bombista,
impingia-me «A Lágrima», mas só ele é que se comovia
com aquela aguadilha que tremia
e ainda hoje deve tremer, tremeluzir
em certas almas litográficas, singelas.
Depois vi o Sérgio desmontar
as peças duma máquina que nem sequer havia
e perdi o Junqueiro de vista.
Será que eu me junqueiro? Pode ser,
já que tenho comido, sem saber,
de muita alpista...
Quanto a esse Tolentino, esse faceto,
devo dizer que nada lhe roubei
mas que podia ser seu neto.
Como neto podia muito bem
ser de Paulino, desse abade
que com certeza me arranjaria mãe.
(Continua o desfile, ó prima, já que
a prosa
vai bonita a pretexto de autocrítica...)
*
Cesário diz-me muito: gostava de ferramentas, como eu,
e vê-se que para ele o ser feliz
era lançar, originais e exactos, os seus alexandrinos,
empunhar ferramental honesto
cuja eficácia ele sabia que
não vinha da beleza, mas da perfeita
adequação.
Não tem halo, tem elo e o seu encadeado
é o verso habilmente proseado.
(Que feliz eu seria, ó prima, se o
Cesário
me tivesse deixado uma garlopa!)
António Nobre, embora seja muito em inho,
é o grande Só que somos nós,
por isso gosto dele (ai de mim, coitadinho!)
(E em conclusão do megalómano
discurso.
ó prima, um bilhete-postal para o Pessoa.
a quem devemos todos tanto, a prima inclusive!)
Muito
querido Pessoa, saberias agora
que não basta ser lúcido, merda, que não basta
a gente coser-se com as paredes
e cercar de grandes muros quem se sonha,
que não basta dizer basta de provincianos!
*
Bem sei que tenho sido, não poucas vezes, derrotado pela pressa,
que me espojo na anedota ou a embalo
na folha-de-flandres da conversa,
bem sei que muitos dos meus versos
nem para atacadores.
Sei que não se deve, que não é táctico cuspinhar contra o vento,
que logo, a jusante, um sujeito nos berra:
— Ó cavalheiro sua besta e se faz obséquio fosses cuspir na tua irmã!
Sei que não é bonito jogar ao chinquilho nos salões,
onde há tocheiros, santos, meninada, abstracções, tias
que a minha malha pode ofender, partir.
Sei que o sal das palavras
vai saraivar, às vezes, carne viva.
Sei que a rapariga que vem forrar os cantos
onde os homens se juntam, magote de pexotes,
com a sua esquivança de felino,
não aguenta a palavra com que eu lhe pego na palavra
e à queima-roupa lhe atiro.
*
A poesia é a vida? Pois claro!
Conforme a vida que se tem o verso vem
— e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertinura, pegas no paleio;
o mais é isto: o tolo dum poeta
a beber, dia a dia, a bica preta,
convencido de si, do seu recheio...
A poesia é a vida? Pois claro!
Embora custe caro, muito caro,
e a morte se meta de permeio.
*
De permeio, a morte? Sim, a arrenegada,
venha rebuçada ou escancarada,
a que te ceifa inteiro ou se deita, primeiro,
de esperanças, na tua lástima de cama.
De permeio, pois pois, que isso de morrer
não faz parte de nenhum programa.
E podia fazer?
Alexandre O'Neill
(de Feira Cabisbaixa, 1965)
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