sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Estupro, ou Natal-42 - Jorge de Sena

 

Estupro, ou Natal-42

 Estupro, ou Natal-42

 

Da passagem da aurora vem uma noite dizendo
que alguém resiste à coragem da vida.
E a noite supõe que só alguém resiste.
A noite desce, não pode saber que são muitos
que resistem todos por qualquer canto do ser,
mesmo quem finge, mesmo quem não finge
e sofre solitário por saber da força,
a força teima dentro quando se fareja,
ó noite, a resistência invade o coração do mundo,
terra não lavrada, terra que ficou incólume
do sangue dos justos, das lágrimas das mães
e das mulheres que quiseram ser mães
sem que qualquer homem lhes servisse
e das que não serviram para nenhum homem
e dos homens virgens porque o tempo urgia,
terra que ficou incólume
como se houvesse mais que duas mãos
para a esconder do orvalho!

Não, não querem que as palavras tristes
a humedeçam; querem reservá-la
para fins ocultos, para bruxarias,
para bonecos de barro de que fala a Bíblia,
muitas estátuas com rostos de empréstimo,
rostos roubados a quem sofreu pela esperança
e morreu lutando contra uma membrana ténue
entretecida pelo tear do medo.

Querem-te virgem, terra, para violações sangrentas,
e não consentem que sejas amada pela teimosia de estrelas
com que o Universo fecunda triunfante
o véu mísero e obscuro que, até tu sem querer,
estendes, quando planeta, sobre o firmamento.

 

Jorge de Sena

28/12/1942

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