sábado, 19 de dezembro de 2020

Deixa passar o meu povo - Noémia de Sousa (Let My People Go - Paul Robeson)

Deixa passar o meu povo

Noite morna de Moçambique
e sons longínquos de marimbas chegam até mim
– certos e constantes –
vindos nem sei eu donde.
Em minha casa de madeira e zinco,
abro o rádio e deixo-me embalar…
Mas vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlém.
“Let my people go”
– oh deixa passar o meu povo,
deixa passar o meu povo! -,
dizem.
E eu abro os olhos e já não posso dormir.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
“Let my people go!”

Nervosamente,
sento-me à mesa e escrevo…
Dentro de mim,
deixa passar o meu povo

“oh let my people go…”
E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda – minha Irmã!
Escrevo…
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas, dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
e misérias, janelas gradeadas, adeuses de magaíças,
algodoais, o meu inesquecível companheiro branco.
E Zé – meu irmão – e Saúl,
e tu, Amigo de doce olhar azul,
pegando na minha mão e me obrigando a escrever
com o fel que me vem da revolta.
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
– “let my people go
oh let my people go!”

E enquanto me vierem do Harlém
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go
OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!

 

Noémia de Sousa

 

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