Poema para a Catarina
Hei-de levar-te filha a conhecer a neve 
tu que sabes do sol e das marés 
mas nunca repousaste os teus pequenos pés 
na alvura que só longe e em ti houve 
Tinha estado na morte e não pudera 
aguentar tamanha solidão 
mas depois tive a companhia do nevão 
e tu hás-de vir filha com a primavera 
E o deslumbrante resplendor da alegria 
tua fidelidade eterna à vida 
já não permitirão tua partida 
quando raiar fatal o novo dia 
As barcas carregadas com as rosas 
virão perto daquela pura voz 
abandonada pelos meus longínquos avós 
em lagoas profundas perigosas 
Não me afecta o mínimo cuidado 
sinto-me vertical sinto-me forte 
embora leve em mim até à morte 
a cabeça de um príncipe coitado 
Naquelas madrugadas primitivas 
eu segregava um secreto pranto 
vizinho da alegria enquanto 
pelos dias tu ias de mãos vivas 
O costume da minha solidão 
é ver pela janela as oliveiras 
que de todas as árvores foram as primeiras 
que tocaram meu jovem coração 
Purificado pelo tempo estou 
um tempo de feroz esquecimento 
vem minha filha vem neste momento 
em que eu liberto ao teu encontro vou 
Recordo-me do teu cabelo de chuva 
quando tu caminhavas ágil e ladina 
pelos desfiladeiros da neblina 
nessa distante região da uva 
Minha paixão viril serena pelos ritos 
deseja que na minha companhia 
tu sejas imolada à alegria 
na surda região alheia aos gritos 
Não olhes o meu rosto devastado pela idade 
a vida para mim é como se chovesse 
mas se viesses seria como se me acontecesse 
cantar contigo a perene mocidade 
O tempo em que viesses sim seria 
um tempo vertebrado um tempo inteiro 
e não meras palavras arrancadas ao tinteiro 
e alinhadas em fugaz caligrafia 
Viesses tu que a tua vinda afastaria 
todos os meus cuidados transumantes 
e para sempre alegre viveria 
os meus dias infantes já distantes 
A solução da solidão compartilhada 
onde vejo o meu mais profundo mundo 
seria a solução ampla e sem fundo 
oposta sem resposta ao meu país do nada 
Com a voracidade do olvido 
seria só tu vires e lutares 
e por mim de olhos enormes e crepusculares 
serias ente querido recebido 
Volta com os primeiros anjos de dezembro 
num vasto laranjal eu quero amar-te 
e então a tua vida há-de ser a minha arte 
e o teu vulto a única coisa que relembro 
O passado é mentira digo eu 
sensível ao esplendor do meio-dia 
e sob a árvore plena da alegria 
o mínimo cuidado esmoreceu 
Ao grande peso de tanto passado 
com a insónia da dúvida na testa 
basta a tua presença que protesta 
e todo eu me sinto renovado 
Ruy Belo
in 'Despeço-me da Terra da Alegria'
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