Epístola a Álvaro Salema
É triste e
é cómico, mas é preciso dizer-se:
quem mais recusa e nega é quem mais
aceita,
e não aceita mais aquele que menos
recusa.
Porque de infindo amor nos recusamos
a que ele seja esse infamar-se o ser
que as coisas e os humanos nunca são
inteiras.
A conivência torpe com a humanidade,
no que ela tem de vil, de ignóbil, de
mesquinho,
a conivência com este espetáculo
hediondo
de um mundo de traição, perfídia,
malignidade reles,
e sobretudo a estupidez triunfante,
não é possível.
Seja qual for a causa, a nobre causa,
a santa causa,
não é possível: nada que seja nobre,
nada que seja santo, pode resistir
a tão porcas vizinhanças. Mas,
se recusarmos essas complacências,
chamam-nos traidores aqueles que a
traição cega
na fúria de que as causas justificam
os fins.
Antes trair tudo isso. Se uma coisa,
um homem, uma pátria,
precisam da mentira e do contágio sujo
para salvar-se - que há que salvar
neles?
Que a nossa vida seja nossa: ninguém
mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por
conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela
existe
e há, desde o princípio do mundo,
homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes,
não serão
amados, não serão sobretudo criaturas
fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não
aceitaram que os mandasse.
Cada qual que mande nos fiéis da sua
igreja;
e que eles sejam obedientemente fiéis.
Mas que se não diga que não pertence
ao mundo
quem, porque lhe pertence, não aceita
ordens
das sociedades de socorros mútuos
a que não pertence. Traição é isso de
fingir-se alguém
o guardião só de uma verdade. As
verdades
são prostitutas notórias que depravam
os seus guardiões. E, contra essas
verdades tão ricas,
e tão poderosas de seus fiéis, só
temos
esta dignidade que nos querem tirar -
talvez porque seja mesmo o de que
sentem falta.
in Dedicácias
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