segunda-feira, 19 de junho de 2023

Pátria, lugar de exílio ~ Daniel Filipe

 


Pátria, lugar de exílio

 

Neste ano de 1962

não como Hâzim Hikmet no avião de pedra

mas na minha cidade

livre de ir onde quiser

e no entanto prisioneiro

neste ano de 1962

exatamente

em Lisboa

Avenida de Roma número noventa e três

às três horas da tarde

 

Neste ano de 1962

encostado a uma esquina da estação do Rossio

esperando talvez a carta que não chega

um amor adolescente

meu Paris tão distante

minha África inútil

aqui mesmo

aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura

cumprindo os pequenos ritos quotidianos

cigarro após o almoço

café com pouco açúcar

má-língua e literatura

 

Aqui mesmo a não sei quantos graus de latitude

e de enjoo crescente

solitário e agreste

invisível aos olhos dos que amo

ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado

com um erro de contas

incapaz de dizer toda a minha ternura

operária de fábrica com três filhos famintos

 

Aqui mesmo envolto na placidez burguesa

higienicamente limpo e com os papéis em ordem

vestido de nylon dralon leacril

com acabamentos sanitized

e lugar marcado junto ao aparelho de TV

eu

enjoado de tudo e contemporizando com tudo

eu

peça oleada do mecanismo de trituração

eu

incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia

eu

apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto

eu

neste ano de 1962

exatamente

não ontem mas precisamente às três horas da tarde

pela hora oficial

exilado na pátria

 

De ti sabes o nome

a hora exata o martelo no relógio

a escassa visão do tempo novo, a vida

sempre imatura e entanto desejada

 

De ti sabes a calma citadina

a distância entre a casa e o emprego o perfil

da amante

o sabor do café matinal

a maresia súbita.

 

De ti sabes a idade a altura o peso e o vigor

dos músculos a suave atração

da porta do cinema

a misteriosa voz lunar palavras soltas

gagarine vostok estação espacial

 

De ti sabes os sinais característicos

quando pode ser escrito medido registado

em fichas passaportes cartões de identidade.

Só não sabes da bala da pólvora da arma

só não sabes das mãos como as tuas plebeias

erradas mãos do povo

só não sabes do medo do ódio da terrível impotência.

 

Só não sabes da morte antes do tempo

exilado na pátria numa tarde de Maio.

 

Pergunto. poderia cantar de modo alheio

dizer outras palavras como quem diz bom dia
poderia acaso ignorar o tempo a tortura a prisão
Bernardino e a pequena rosa
vermelha e orvalhada
insólita no tablier do automóvel azul

Poderia falar dos dias impossíveis
das manhãs sem revolta. do xadrez matemático
jogado interminavelmente
das virgens, dos poentes, do mar da minha infância

Poderia escrever meu amor e pensá-lo
Sem mais nada. sem a rubra mancha de sangue na parede da cela
Sem um nome ou um grito

 

2ª canção

Três balas detiveram companheira

meu rio em seu humano curso

Não bastou a primeira

para dobrar-me a rigidez do torso

 

Mísero dia, esse ! Só na morte

cumpro inteiro o destino desejado:

impassível e forte,

juvenil e alado

 

Três balas como um sopro de agonia,

não minha ! não da pátria ! mas dos seres

desconhecidos da zoologia,

que recebem da infâmia os seus poderes.

 

Aqui nesta tarde de Maio

canto obsessivamente a minha pátria

Canto-a como quem ama ou sonha com o lar refúgio

calmo braseiro fértil jardim litoral merecido

Canto-a de dentro para fora ignoto

descobri da ilha antes do mar vicioso

esperança lúbrico entardecer

 

Canto dizendo pátria olhos despertos

 

fecundo de amor

ó pátria local do único abandono

possível antes da hora

liberdade serena consentida

visão paradisíaca renascer de amizade

 

Canto e à minha volta o rio humano flui

adolescentes entram nos cafés

discutem-se negócios conquista-se duramente o pão quotidiano

ama-se

telefona-se

murmuram-se boatos e promessas de emprego

 

Aqui neste ano de 1962

primeiro de Maio

às três da tarde

 

E de novo pergunto poderei acaso dizer outras palavras

falar do tempo do relógio de ponto dos passeios aos domingos

cerrar os olhos à coreografia da violência

diariamente aprendida por entre o sal das lágrimas

 

Poderei esquecer como se não me pertencessem

seus nomes usuais

a decisão alegre e corajosa

que sombreia de medo o sono dos carrascos

Uma mulher desliza

meus olhos vão com ela presos ao ondular das suas ancas

 

Ah mas que também o amor me distraia

que eu possa manter-me lúcido e desperto

ávido

estátua imóvel de proa

terrível como a angústia

neste primeiro de Maio de 1962

às três horas da tarde

precisamente não antes nem depois

não ontem amanhã ou dia incerto de qualquer mês e ano

mas HOJE

às TRÊS HORAS EXACTAS

numa esquina da estação do Rossio

 

Que nada possa calar o meu ódio e desprezo

nem sequer tu Amada companheira

 

E no entanto lembro o nosso primeiro encontro

retiro dele a força indispensável

para seguir cantando

atento ao mudo apelo do pequeno vendedor de jornais

aos olhos tristes da prostituta grávida

ao passo arrastado do carregador da estação

 

De mãos dadas

no jardim sob a chuva

reinventando o amor

ou

no primeiro andar de um autocarro

através da cidade sem destino preciso

 

Recordo o calor de Julho e o aroma dos pinheiros

amámo-nos sobre a terra

eram três horas da tarde como agora

tínhamos pouco dinheiro

e havia um barco à nossa espera inevitavelmente

 

Com tudo isso teço o meu próprio disfarce

com a ternura grave que me dás

alimento também certa rosa vermelha

 

3ª canção

 

Pátria, lugar de exílio,

geométrico afã

ou venenoso idílio

na serena manhã.

 

Pátria, mas terra agreste;

terra, apesar da morte.

Pátria sem medo a leste.

Lugar de exílio a norte.

 

Pátria, terra, lugar,

cemitério adiado

com vista para o mar

e um tempo equivocado.

 

Terra, débil lamento

na temerosa  noite.

Sobre os carrascos, vento,

desfere o teu açoite!

 

Anjo de fogo

pressinto a tua vinda

o gládio necessário erguido

sobre a cidade dominada

e digo-vos senhores é findo o vosso tempo

o jogo terminou ainda que o não pareça

 

Goivos que hão de florir a vossa humana morte

são já semente adormecida à espera

de um outro Maio

luminoso e quente

 

Aqui às três da tarde

posso olhar-vos sem medo

e dizer-vos aqui estou

O Poeta é um operário

(MaiaKovski)

aprendei depressa a matar-nos

o poeta é o inimigo.

Mergulhamos as raízes na terra desventrada

confundimo-nos com ela

as nossas mãos florescem

e o vento leva a toda a parte o nosso desafio

 

Contra isto nada podem as armas a polícia os exércitos

a prisão a tortura

somos mais fortes do que tudo

somos a alegria

mesmo no fundo das masmorras cantamos

os pássaros aprendem as nossas palavras de esperança

descem com elas sobre o vosso sono

e ensinam-me o terror das noites solitárias

 

Tendes jornais

usai-os

tendes exércitos

usai-os

tendes polícia

usai-a

tendes juízes

usai-os

usai-os contra nós

procurai esmagar-nos

cantando resistimos

Somos a alegria o corpo o sal da terra

o sol das manhãs férteis a música do outono

a própria essência do amor a força das marés

somos o tempo em marcha

 

Esta é a única verdade

sabemos que vos é difícil aceitá-la

envoltos como estais em suborno e usura

bancos alta finança empréstimos externos

E no entanto esta manhã um pássaro

pousou à vossa beira embora

inutilmente

 

A pequena dactilógrafa matou-se

nós sabemos porquê.

 

Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa

e saiu cantando para a rua

nós sabemos porquê.

 

Uma noite

a jovem costureira não voltou para casa

nós sabemos porquê.

 

Um poeta

Roeu as unhas enquanto foi possível

mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro

Nós sabemos porquê.

 

NÓS SABEMOS PORQUÊ.

 

E no entanto é doce dizer pátria

sonhar a terra livre e insubmissa

inteiramente nossa

Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos,

Como

se nada houvesse antes de nós

e desde as fundações a erguêssemos completa

pura alegre acolhedora virgem de medos,

mortos insepultos.

 

Regresso pelo tempo ao dia de hoje

primeiro de Maio de 1962

hora segunda da meditação

 

Ganho de novo consciência do lugar

Chegam comboios há mais gente na rua

Como se o rio humano recebesse

O agreste tributo de outra nascente

 

Vêm com o rosto de todos os dias

o olhar de todos os dias

as mãos e os pés de todos os dias

cansados de preencher impressos

moldar metais

afeiçoar madeiras

rodar motores e válvulas

sujos de óleo e poeira

deslumbrados de sol

operários    empregados de escritório    vendedores de porta

a porta

dir-se-ia que cantam

 

De súbito   a cidade parece banhada de alegria

estamos juntos meu Amor

possessos da mesma ira justiceira

Damos as mãos como dois jovens namorados

e sorrimos felizes

à doce primavera acontecida

no magoado coração da pátria

 

Vêm de toda a parte sem idade

Redes cobrem palavras esquecidas

e no silêncio cúmplice desfraldam

um novo e claro amanhecer do mundo

 

Vêm de mãos vazias. nem flores simbólicas

nem ramos de oliveira

Entre os seus dedos apenas desabrocha

o obscuro desejo de apertar outras mãos

como as suas. nervosas. sujas, proletárias.

 

E eu limpo, eu meticulosamente barbeado

eu de papéis em ordem

eu vestido de nylon dralon leacrileu rigorosamente asséptico

eu mergulhado até às virilhas na placidez burguesa

vou convosco cantando companheiros

irmãos em pátria

em sonho em sofrimento

 

Ah riso aberto, coração do povo

cálice, flor, inesperado aroma

doce palavra antiga

liberdade

 

 

4ª canção

Roga por nós, ó pátria, ó sonho sem fronteira!,

por nós, a quem recusam a alegria,

a liberdade, o pão de cada dia

a vida verdadeira!

 

Ó pátria canta! Do teu presepe imaginário,

ergue a voz dulcíssima, magoada,

e estilhaça de esperança as paredes do aquário,

ó pacífica pomba engaiolada.

 

Contigo iremos pela noite fora, cantando.

« Erguendo rútilas bandeiras

por sobre aldeias, campos, sementeiras,

como os arcanjos portadores da aurora».

 

Como lobos de súbito

irrompem na planície citadina

carregados de morte

 

Seu nome é violência

Trazem nas mãos mortíferos sinais

e de órbitas vazias

 

caminham em silêncio

envoltos na terrível solidão

do crime encomendado

 

Marginam as esquinas

escondem o rosto sob o aço liso

dos negros capacetes

 

e anónimos ocultos

pela espessa cortina de ódio e névoa

como robots avançam

 

A morte engatilhada

espera o momento de partir Agora

Cumpra-se o ritual

 

Uma voz grita  Viva

a liberdade, O coro lhe responde

pontuado de tiros

 

Canalhas Temos fome

Arranquemos as pedras da calçada

Ó meu amor resiste

 

Resiste de olhos secos

Sem lágrimas  Sem medo  Só talhada

no sílex da ira

 

Pronta a dar corpo ao sonho

e entanto testemunha do martírio

companheira e amante

 

De mãos dadas cantando

abrimos flores às balas assassinas

merecemos a vida

 

5ª canção 

 

Ó sonho acontecido e decisivo!

Ó frio tempo de terror, ó duro

Ofício de manchar de sangue vivo

As esquinas de pedra onde o futuro

Se conjuga no modo imperativo!

 

Recusa a face, solidão errada!

Ébrio de esperança e juventude assomas

- Ó coração da pátria, minha amada! –

Ao meu olhar, por entre riso e aromas

De mirto e rosa-chá desabrochada.

 

Neste ano de 1962

primeiro de maio

ao começo da noite

podemos finalmente olhar no espelho a nossa muda imagem

sem temor nem vergonha

 

Na solidão do quarto, meu Amor

podemos pela primeira vez

deixar de recear futuros julgamentos

e as perguntas silenciosas nos olhos dos vindouros

esquecer a humilhação, o insulto sem resposta

que foi o nosso pão quotidiano e áspero

 

Agora poderemos ser de novo homens

livres, ainda que presos

mastigando a comida sem o sabor a lágrimas

antes com o sal da esperança

merecido tempero, paga justa da luta

 

Renegamos o passado maculado de angústias

esquecemos as pequenas diárias covardias

os negócios onde tudo se perde e até a honra

 

Neste primeiro de Maio de 1962

podemos finalmente sorrir sem amargura

 

Daniel Filipe

O 1º de Maio de 1962, dia muito importante na luta antifascista em Portugal. O poema pertence a um livro com o mesmo título e onde estão também incluídos outros dois conjuntos de poemas: ‘O viajante clandestino’ e ‘A  ilha imaginada’.


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