segunda-feira, 31 de julho de 2023

Lapinha - Adélia Prado

 

Lapinha


Quando éramos pobres e eu menina

era assim o Natal em nossa casa:

quatro semanas antes

a palavra advento sitiava-nos,

domingo após domingo.

Comeríamos melhor naquele dia,

seríamos pouco usuais:

vinho, doces, paciência.

Porque o menino estremecia no feno

e nos compadecíamos de Deus até as lágrimas.

Olhando a manjedoura, o que eu sentia

– sem arrimo de palavras – 

era o que eu sinto ainda:

‘O desejo de esbeltez será concretizado.’

À luz que não tolera excessos,

o musgo, a areia, a palha cintilavam,

a pedra. Eu cintilava.

A Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios

ele virá com a boca e mão incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

– só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei se não for santa?

Adélia Luzia Prado Freitas

quinta-feira, 27 de julho de 2023

ENTREGRADES - António Cardoso

 


 ENTREGRADES

Imaginada se tece

(É entre grades!) minha vida.

 Mas mais ela me apetece

A fonte de água remida...

 

 E enquanto ela não estua

No pobre chão esgotado,

É meu suor que perpetua

 Pão concreto libertado...

 

António Cardoso

quarta-feira, 26 de julho de 2023

SAUDADE - Pablo Neruda

 

SAUDADE


SAUDADE... — Que será… eu não sei... tenho buscado
em certos dicionários poeirentos e antigos
e outros livros que ocultam o significado
dessa doce palavra de perfis ambíguos.

Dizem que as montanhas são azuis como ela,

que nela empalidecem longínquos amores,
e um nobre e bom amigo meu (e das estrelas)
nomeia com os cílios e as mãos em tremores.

E no Eça de Queiroz sem olhar a adivinho,

o segredo se evade em sua doçura e sede,
como essa mariposa, corpo em desalinho,
Sempre longe - tão longe! - das minhas calmas redes.

Saudade... tens, vizinho, o real significado

dessa palavra branca que, peixe, se evade?
Não... treme na boca seu tremor delicado...
Saudade...

Pablo N eruda

SAUDADE
SAUDADE —¿Qué será?... yo no sé... lo he buscado
en unos diccionarios empolvados y antiguos
y en otros libros que no me han dado el significado
de esta dulce palabra de perfiles ambiguos.

Dicen que azules son las montañas como ella,

que en ella se oscurecen los amores lejanos,
y un noble y buen amigo mío (y de las estrellas)
la nombra en un temblor de trenzas y de manos.

Y hoy en Eça de Queiroz sin mirar la adivino,

su secreto se evade, su dulzura me obsede
como una mariposa de cuerpo extraño y fino
siempre lejos —¡tan lejos!— de mis tranquilas redes.

Saudade... Oiga, vecino, ¿sabe el significado

de esta palabra blanca que como un pez se evade?
No... Y me tiembla en la boca su temblor delicado...
Saudade...
- Pablo Neruda, em "Crepusculário". [tradução José Eduardo Degrazia]. Edição Bilíngue. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2011

segunda-feira, 24 de julho de 2023

A Tentação - Murilo Mendes

 


A Tentação

Eu paro pálido tremendo
“Já que és o Verdadeiro Filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz”.

 Murilo Mendes

domingo, 23 de julho de 2023

É ASSIM O TEMPO - Euler Granda

 

É ASSIM O TEMPO

Nem a muralha da china

nem o arame farpado

nem os cordões de cães policias

ou policias cães

que protegem as nádegas sociais e cristãs

do presidente hot dog,

nada é capaz

que eu saiba,

ninguém te pode deter.

Nem as minidesvalorizações,

nem a maxi fome,

nem todos os bocejos juntos da burocracia,

nem a inflação,

nem a desinflação,

nem a dívida externa:

alheia, mortal

que carregamos às costas;

nem patriotismo a soldo

das forças desarmadas da pátria,

nem as redes do medo onde no rio revolto

pescam as religiões;

contigo não é possível:

a todos e a tudo

passas por cima; matas tudo;

pulverizas tudo,

desmemorias tudo;

transformas todos em salsichas

para as aves de rapina;

tudo não é mais

que uma palavra decrépita

escrita na areia movediça do cérebro;

esse é o tempo

e não trapalhices de relógios.

Euler Granda

POEMA ESO ES EL TIEMPO - Euler Granda

Ni la muralla china
ni el alambre con púas
ni los cordones de perros policías
o policías perros
que resguardan las nalgas sociales y cristianas
del hot dog presidente,
nada es capaz
que yo sepa,
nadie puede detenerte.
Ni las minidevaluaciones,
ni la maxi hambre,
ni todos los bostezos juntos de la burocracia,
ni la inflación,
ni la desinflación,
ni la deuda externa:
ajena mortecina
que nos cargaron en la espalda;
ni el patriotismo a sueldo
de las fuerzas desarmadas de la patria,
ni las redes del miedo con que a río revuelto
pescan las religiones;
contigo no se puede:
a todos y a todo
nos pasas por encima; a todo matas;
todo lo pulverizas,
lo desmemorias todo;
a todos nos conviertes en morcillas
para las aves de rapiña;
todo no es más
que una decrépita palabra
escrita en la arena movediza del cerebro;
eso es el tiempo
y no huevadas de reloje

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Madrugada camponesa - Thiago de Mello

 

Madrugada camponesa

para os trabalhadores do MST, em 1999

Madrugada camponesa,
faz escuro ainda no chão,
mas é preciso plantar.
A noite já foi mais noite,
a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção
feita de medo e arremedo
para enganar solidão.
Agora vale a verdade
cantada simples e sempre,
agora vale a alegria
que se constrói dia a dia
feita de canto e de pão.

Breve há de ser (sinto no ar)
tempo de trigo maduro.
Vai ser tempo de ceifar.
Já se levantam prodígios,
chuva azul no milharal,
estala em flor o feijão,
um leite novo minando
no meu longe seringal.

Madrugada da esperança,
Já é quase tempo de amor.
Colho um sol que arde no chão,
lavro a luz dentro da cana,
minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
vale a pena trabalhar.
Faz escuro mas eu canto
porque a manhã vai chegar.

Thiago de Mello

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Dói-me o peito - José Fanha

 

Dói-me o peito 

Dr.
dói-me o peito
do cigarro
do bagaço
do catarro
do cansaço
dói-me o peito
do caminho
de ida e volta
do meu quarto
à oficina
sem parar
sempre a andar
sempre a dar
dói-me o peito
destes anos
tantos anos
de trabalho e combustão
dói-me o luxo
dói-me os fatos
dói-me os filhos
dói-me o carro
de quem pode
e eu a pé
sempre a pé
dói-me a esperança
dói-me a espera
pelo aumento
pela reforma
pelo transporte
pela vida e pela morte.

Dr.
já estou farto
de não ser
mais que um braço
para alugar
foi-se a força
e o meu corpo
é como o mosto pisado
como um pássaro insultado
por não poder mais voar.

Dr.
eu não sei ler
os caminhos
por dentro
dos hospitais
mas alguém há de aprender
entre as rugas do meu rosto
o que não vem nos jornais
e não há nada no mundo
nem discurso
nem cartaz
capaz de gritar mais alto
que as palmas das minhas mãos
que o meu sorriso sem jeito,

Dr.
Dói-me o peito…

José Fanha

Eu sou Português aqui, ed. Ulmeiro

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Uma vez que já tudo se perdeu - Ruy Belo

 

Uma vez que já tudo se perdeu

Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
Falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
Como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
Céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
Lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
Uma vez que já tudo se perdeu

Ruy Belo

terça-feira, 18 de julho de 2023

Graziela - 22 - Daniel Abrunheiro

 

Graziela - 22

 

Claro que quem prefere o inverno não dorme na rua.

Os deserdados que dormem na rua não bucolizam.

Serão livres – mas não da liberdade de que precisam.

Esta parece mansa verdade pura, nua & crua.

 

Nós (os por enquanto com paredes, soalho & tecto) pairamos.

Passamos pela existência, sim, enjauladamente.

Labuta-se, dorme-se, é-se estatística gente.

Mas, parece, pouco aprendemos. E o que sim, não ensinamos.

 

Vivemos – mas em prosa rabiscada à pressa.

Ao contrário do passado, qualquer futuro é a termo.

Digo, redigo, pito e repito: o meu Santo chama-se Eça

– naturalmente o de Queiroz, esse divino estafermo.

 

Não seria, não é, não será agora que, à cautela,

me meterei a fazer carreira – de rico, por exemplo.

Prefiro, da literatura, a alteridade em espaço & tempo.

O resto? É comer-lhe-&-beber-lhe, D.ª Graziela

 

Daniel Abrunheiro

(blog Daniel Abrunheiro)

     Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2022

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

A Pedra Lavrada - Marcus Accioly

 

A Pedra Lavrada

1 - A mão que lavra a pedra
A pedra a mão esgota,
No chão de pedra o grão
De pedra em pedra brota.
A mão sacode o grão
No chão de pedra morta,
De pedra em pedra o grão
Da própria pedra brota.

2 - A mão fecunda a pedra
Nos ossos do seu ventre,
O grão nasce do chão
Da pedra em seu deventre.
A mão conhece o chão
Onde desceu por entre
O grão que vem da pedra
Aberta, do seu ventre.

3 - Se a chuva molha não
O grão na pedra, ovo
No ninho, pedra aberta
Que se fecha de novo.
A mão que sabe o grão
Que falta à mão do povo,
Espera o sol, a ave,
Que choca o grão, o ovo.

4 - O sol, ave-de-fogo,
Não queima o grão que choca,
Porém nascido ao sol
O grão já nasce soca.
Mas, sim ou não, o grão
Da pedra se desloca
Chocado pelo chão
Depois que a mão o choca.

5 - O grão não sabe o chão
Por isso a mão prepara
O grão para viver
Na pedra que escancara.
Se mesmo farto o grão
A safra é sempre avara,
Na pedra, o grão em flor
E fruto se escancara.

(...)

Marcus Accioly

sábado, 15 de julho de 2023

O coração da liberdade - Lêdo Ivo

 

O coração da liberdade

Estive, estou e estarei

no coração da realidade,

perto da mulher que dorme,

junto do homem que morre,

próximo à criança que chora.

 

Para que eu cante, os dias são momentâneos

e o céu é o anúncio de um pássaro.

Não me afastarei daqui,

da vida que é minha pátria,

e passa como as águias no sul

e permanece como os vulcões extintos

que um dia vomitam sono e primavera.

 

Minha canção é como a veia aberta

ou uma raiz central dentro da terra.

Não me afastarei daqui, não trairei jamais

o centro maduro de todos os meus dias.

Somente aqui os minutos mudam como praias

e o dia é um lugar de encontro, como as praças,

e o cristal pesa como a beleza

no chão que cheira à criação do mundo.

Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.

Bebo a hora que é água; refugio-me na estância

quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,

e estou livre, sinto-me final, definitivo

como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz

e todas as coisas que são o centro, o coração

da realidade que escorre como lágrimas.

Lêdo Ivo

- Lêdo Ivo, in "Linguagem", 1951.

 

sexta-feira, 14 de julho de 2023

The Rebel Girl - Joe Hill by Janne Lærkedahl

 

The Rebel Girl

[Verse 1]
There are women of many descriptions
In this queer world, as everyone knows
Some are living in beautiful mansions
And are wearing the finest of clothes
There are blue blood queens and princesses
Who have charms made of diamonds and pearl
But the only and thoroughbred lady
Is the Rebel Girl

[Chorus]
That’s the Rebel Girl, the Rebel Girl!
To the working class, she’s a precious pearl
She brings courage, pride and joy
To the fighting Rebel Boy
We’ve had girls before, but we need some more
In the Industrial Workers of the World
For it’s great to fight for freedom
With a Rebel Girl

[Verse 2]
Yes, her hands may be hardened from labor
And her dress may not be very fine
But a heart in her bosom is beating
That is true to her class and her kind
And the grafters in terror are trembling
When her spite and defiance she’ll hurl
For the only and thoroughbred lady
Is the Rebel Girl

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[Chorus]
That’s the Rebel Girl, the Rebel Girl!
To the working class, she’s a precious pearl
She brings courage, pride and joy
To the fighting Rebel Boy
We’ve had girls before, but we need some more
In the Industrial Workers of the World
For it’s great to fight for freedom
With a Rebel Girl

 Joe Hill

 

 

A Rapariga Rebelde

Há muitos tipos de mulheres

neste estranho mundo, como sabemos.

Algumas vivem em grandes mansões,

e veste finos trajes.

Há rainhas e princesas de sangue azul

que têm um encanto lavrado de diamantes e pérolas.

Mas a única mulher de puro sangue

é a rapariga rebelde.

 

É a rapariga rebelde, a rapariga rebelde!

Para a classe trabalhadora ela é uma pérola preciosa.

Proporciona valor, orgulho e alegria

ao rapaz rebelde que luta.

Já havia raparigas, mas necessitamos de mais

no sindicato dos trabalhadores da indústria

que lutam pela liberdade

com uma rapariga rebelde.

 

Sim, ela tem calos nas mãos de trabalhar,

e o seu vestido talvez não seja muito fino.

Mas um coração bate no seu peito.

E os capitalistas tremerão de medo

quando ela lança seu desafio de ódio.

É uma mulher única, de puro-sangue;

É a rapariga rebelde!