sábado, 15 de julho de 2023

O coração da liberdade - Lêdo Ivo

 

O coração da liberdade

Estive, estou e estarei

no coração da realidade,

perto da mulher que dorme,

junto do homem que morre,

próximo à criança que chora.

 

Para que eu cante, os dias são momentâneos

e o céu é o anúncio de um pássaro.

Não me afastarei daqui,

da vida que é minha pátria,

e passa como as águias no sul

e permanece como os vulcões extintos

que um dia vomitam sono e primavera.

 

Minha canção é como a veia aberta

ou uma raiz central dentro da terra.

Não me afastarei daqui, não trairei jamais

o centro maduro de todos os meus dias.

Somente aqui os minutos mudam como praias

e o dia é um lugar de encontro, como as praças,

e o cristal pesa como a beleza

no chão que cheira à criação do mundo.

Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.

Bebo a hora que é água; refugio-me na estância

quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,

e estou livre, sinto-me final, definitivo

como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz

e todas as coisas que são o centro, o coração

da realidade que escorre como lágrimas.

Lêdo Ivo

- Lêdo Ivo, in "Linguagem", 1951.

 

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