segunda-feira, 31 de julho de 2023

Lapinha - Adélia Prado

 

Lapinha


Quando éramos pobres e eu menina

era assim o Natal em nossa casa:

quatro semanas antes

a palavra advento sitiava-nos,

domingo após domingo.

Comeríamos melhor naquele dia,

seríamos pouco usuais:

vinho, doces, paciência.

Porque o menino estremecia no feno

e nos compadecíamos de Deus até as lágrimas.

Olhando a manjedoura, o que eu sentia

– sem arrimo de palavras – 

era o que eu sinto ainda:

‘O desejo de esbeltez será concretizado.’

À luz que não tolera excessos,

o musgo, a areia, a palha cintilavam,

a pedra. Eu cintilava.

A Serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios

ele virá com a boca e mão incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

– só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei se não for santa?

Adélia Luzia Prado Freitas

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