domingo, 3 de março de 2013

CIDADE, Poemas de Cochat Osório.

CIDADE, Poemas de Cochat Osório.
Luanda, 1960
«Destes movimentos largos de corações e almas gerou-se a compreensão. E a paz, profundamente humana e serena, que permite olhar de frente a vida e compreender os homens que caminham, pois é no caminhar dos homens que se geram os milagres humanos que são as cidades

Esta é a minha cidade.
Terra de contrastes coloridos, na vegetação, nas casas e nos homens. Terra de síntese e de ligações solidárias, em que tudo e todos se combinam para cristalizar uma definição. Em que todos se unem no desejo de criar, mais do que pensam, mais do que dizem, confiados no futuro da cidade. Terra de suor e de trabalho.
Neste poema, a que dei o melhor da minha ternura e do meu vigor, procuro mostrar a cidade quando acorda para o trabalho. E julgo (eu não julgo nada, tenho a certeza absoluta! ) dizia eu que julgo mostrar nesta faceta da cidade toda a minha terra; porque sei que todos os que a fizerem e a fazem são homens que acordam cedo e dão a sua parte de suor e sangue à cor desta cidade.
Uns tiveram a sua hora e deixaram de acordar cedo; outros marcam na cadência dos passos o ritmo da marcha da cidade. Há os que a seguram nas mãos vitoriosas ( e ansiosas também ) e há os que ainda esperam a oportunidade de vencer e demonstrar o seu amor a esta terra.
Das fragatas torturadas do Távora veio meu Pai, de Bordeaux meu Avô, de Castilla la Vieja veio minha Mãe. Tudo isto para que se cumprisse o destino e eu nascesse aqui. Mas trouxeram todos o coração e conseguiram amar a terra jovem que vinham ajudar a construir e a que deram a suprema dádiva dos homens: os próprios filhos.
Ouvem-se na rua os passos cadenciados da cidade que faz a cidade. É um ritmo obcecante de marcha. Há os que dizem que estão aqui para dar à terra os próprios filhos; outros que estão aqui porque os pais vieram de longe para cumprir o destino; outros, porque dos longes do tempo é este e foi sempre assim.
Destes movimentos largos de corações e almas gerou-se a compreensão. E a paz, profundamente humana e serena, que permite olhar de frente a vida e compreender os homens que caminham, pois é no caminhar dos homens que se geram os milagres humanos que são as cidades.
A todos os que sentem na carne as alegrias e as tristezas desta terra, a todos os que a amam desinteressadamente ( porque o verdadeiro amor é dádiva, não é colheita ), a todos os que sofreram ou sofrem por esta terra, eu dedico a vontade e a intenção que me animam ao escrever este poema.

E deste modo eu ouso oferecê-lo ao Povo de Luanda: do Muceque Lixeira à Ilha, da Estrada da Conduta à Samba, da Baía até muito para além da Maianga (exceptuando apenas os hotéis de luxo).

Esse Povo que passa na minha rua e vive este poema com tal intensidade e tanta simplicidade, que me deu tempo de copiar e de rever a cópia singela que eu fiz da vida da minha CIDADE.
  
1

Seis horas da manhã.
No céu
anda um silêncio azul-violeta.
Aqui,
ali,
além,
um motor a roncar
aquece.
Os pardais dão bicadas no silêncio
num tom mordente,
alegre,
impertinente.
2
E sentado na beira do passeio,
um operário aguarda,
pensa
e esquece.
(Cuidado!
Como ele não aprendeu boas maneiras
não pode comer o que precisa,
é capaz de tornar-se perigoso.
Pelo menos parece). 

3

Um polícia amarelo está à espera.
Do sol,
da luz,
da cor?
Unicamente que o trabalho aqueça
aquela alma danada do motor.
Um cigarro nps queixos:
fuma.
Agora
Enfim!
Ele vai:
ronca a motorizada rua fora,
com o sapo amarelo no selim!

4

Esse operário
da beira do passeio
aguarda ainda,
pensa
fuma, esquece.
Mas não sente receio.
Ele e o polícia
são os dois pólos de sinal contrário
indispensáveis à corrente
(mas quandocorrente).
Saem os dois da mesma bateria,
quero dizer,
anexos alugados,
garagem com miséria
e com chuveiro
que lhes devora um terço do ordenado.

5

logo
bem mais tarde,
quando o sol acendeu e o dia arde,
quando a força do dia tudo aquece,
o polícia recebe ordens de cima.
Então cumpre o horário:
com aquele ódio frio de polícia,
com aquele medo forte de polícia,
com o temor que tem do proletário.
Agora ainda não:
Agora são vizinhos.
E quando parte,
levanta a mão do guiador
e acena com a mão.

6

Num latão velho
e sujo
e amolgado
(regulamentar)
um cão procura ainda os vagos restos
dum jantar.
Fica suspenso
Um cheiro nauseabundo
e espesso,
Que é o que cheira tudo o que apodrece.

7

Uma velha passa.
É trôpega,
cansada.
Tem um vestido escuro com buracos
e os sapatos cambados.
Das mãos
unidas sobre o ventre
pende
o rosário das contas da desgraça.

8

Velha onzeneira e previdente!
Enquanto o operário espera
e sonha com comida;
e o polícia amarelo tem na ideia
melhoria da vida;
e o cão traz a esperança atravessada
de achar um dia a lata bem servida;
e nos motores anseia nobremente
a vontade concreta de partida;
e os pardais
querem sempre
e querem mais
viver em liberdade a sua vida;
a velha arrasta os ossos,
compra as acções do infinito
e paga em padres-nossos.

9

O azul-violeta
(agora azul)
do céu
esmaece.
É o dia que nasce.
E a velha a ruminar palavras em cadeia
segue o caminho
em prece.
Vai a rezar na rua?
E quando o sol atira
as notas estridentes de amarelo
que faltavam ao dia
e acorda as sombras baças com alacridade,
vê-se que a velha tonta
e avarenta
conta
as moedas de que vai gastar
na compra
da eternidade.

10

Mas ela passa fome.
Ah!,
sem o poder de compra desses padres-nossos,
o artritismo havia de miná-la
e de roer-lhe os ossos!
Assim,
arrisca quanto tem na lotaria.
(A que sai um dia
e há-de sair-lhe um dia
e há-de sair-lhe a ela;
vê-se).
De padre-nosso em padre-nosso
vai continuando a vau pela torrente.
E parece feliz,
em paz,
contente.
Mas como o artritismo não perdoa,
ela apodrece.

11

Guincham agora as cintas duns travões.
O operário subiu.
A primeira,
a segunda,
a prise.
E vai ele
também
Ganhar a vida
aos trambolhões.

12

Sobe um polícia a .
Não tem andar de gente:
bamboleante,
os pés ao lado
lentamente,
olha os latões do lixo,
os criados que passam com pão,
o assador de castanhas crepitante
das bicicletas
motorizadas,
espreita os quintais num jeito presumido.
Traz a alma danada cheia da vontade,
ou o que é,
de pôr nas mãos de algum desprevenido
a contra-fé. 

13

Parece o cão a procurar no lixo
alguma coisa mais pra mastigar.
A diferença
(se existe)
é que o polícia
apenas quer multar.
(Ou nem diferença existe,
que o polícia
anda a ganhar esse pão triste
do jantar).

14

Na casa em frente abriu-se uma janela:
-Bom-dia!,
-Adeus!,
-Bom-dia!
Ele parte.
um sorriso,
algumas reticências,
mas é tudo impreciso:
ele olha para trás,
acena com carinho ela.
Depois nãomais nada.
Mas o trabalho dele vai correr bem
e o dela vai encher-se de alegria.
Os sorrisos,
os olhos,
as ideias
contam o que ainda não mas se sente.
(E aquece um pouco mais a luz do dia).

15

Passam ainda os sacos com o pão.
Passos solenes de anemia,
como se os pés pousassem mal no chão
e os homens fossem mera fantasia.
E são.
Os sábios
(os que não são e os que são)
pensaram nas várias verminoses,
no paludismo,
nos problemas vitais da nutrição.
E como a coisa estava discutida,
ficou na mesma
e consentida.

16

Outros
herdaram da velha Europa
a malinha de mão
com o martelo,
a plaina
e o formão
e um farrapo qualquer que tem a alcunha
duma muda de roupa.

 17

São sete e dez.
Mas como o tempo passa!
É outra gente agora:
aquele
tem o cabelo,
a roupa
o jeito
de quem há-de ficar insatisfeito
se não repararem nele.

18

Neste rio da rua
que corre docemente para o mar,
um mar com ondas,
com imensidade
e que tem sempre um vento de desgraça
e a ideia cruel de tempestade;
neste rio da rua
passam agora mais
e mais,
cada vez mais,
com acenos de mão e cumprimentos,
olhares que dizem conhecimento,
um sorriso
de amparo
solidário,
passam todos aqueles que vão cumprir
(ao menos à entrada,
que à saída dependem do patrão)
o esclavagismo do horário.

19

(E o menino doente… ?
e o problema da filha…?
Amor,
ciúme
e dor…,
desejo de mudar…?
Mas começa a cantiga da oficina.
Chocam martelos com bigornas.
Atendem-se os clientes ao balcão.
Erguem os guinchos baldes com cimento.
«Acusando o prezado favor de V. Ex.ª,
somos…»)
Um romance
moderno
em vários tomos
que nenhum editor vai publicar.

20

Aquela rapariga,
airosa,
bata branca no braço,
ri
quando olham para ela.
(Ri sempre
e continua).
Trabalha numa casa de saúde.
(Quando não passa é porque está de vela;
mas sente-se-lhe a falta aqui na rua).

 21

Ouvem-se agora os nomes dos jornais:
uns farrapos com pernas,
uns berros sem beleza e guturais,
uns olhos encovados,
vendem notícias de incerteza e guerra
das nações progressivas e modernas.
(E louvores ao bem estar da nossa terra).

22
 
A loira rechonchuda?
Sete e meia.
Nunca vem .
E a hora é sempre dela…
Porque a outra,
coitada, ou é muito miúda
ou há-de ser eternamente feia.
A loira…
coisa, com certeza!
mudou tanto:
começou pelos saltos;
depois foi o vestido que ficou diferente,
mais justo,
mais jeitoso,
mais contente;
e agora
os olhos pequeninos, ensonados,
desfazem-se em olhares atravessados,
num misto de ousadia e de temor.
Quando ela conseguir a coisa pouca
de gastar o baton que anda a pedir-lhe a boca…,
é de certeza amor.
(E se passar depois por outra rua ?
E se deixar de vir às sete e meia?
Chegará a ser dona dessa hora,
mesmo vindo sozinha,
a feia?).

23

Passam crianças
pálidas,
cansadas,
com os livros na mão,
a pasta
ou nada.
Nem parecem crianças a passar.
Há na indiferença triste daqueles passos
a vaga acusação
de terem estado um doloroso verão
ou a fingir
ou a estudar.
(E algumas
não comeram sequer
ao abalar).

24

Pretos e brancos vão na mesma pista.
Alguns até conversam e discutem,
porque o trabalho e o pão não são racistas.

25

um sabor gostoso da manhã
nesta
mancha da gente que procura
animar a cidade que a não .
A
cidade que pensa que a cidade
é
daqueles que nunca acordam cedo
e alugando
um polícia para cada medo
conseguem
saturar esta cidade imensa
da
sua vadiagem tola e vã.
 
26

Mas eu sei que não é!
Esta cidade,
a terra desta gente,
a terra do trabalho que consome
e que contenta
e mata a fome;
esta cidade de calor,
com sangue
e carne
e fel
e amor
e corpo de cidade;
que é cheia de trabalho e de suor
e força
 e dignidade;
cidade com as cores do arco-íris,
que o sol acorda e pinta
com as tintas de sangue da paleta inquieta
dum pintor
que além de ser pintor inda é poeta;
a cidade que vibra intensamente
e grita
essa mensagem quente de vigor
e de ansiedade
que é o sangue da gente misturado à cor
da cor
duma cidade;
esta cidade quente
fantasiada com a luz potente
do sol
e da manhã;
cidade que recebe do trabalho
a condição humana;
terra que o sol queimou para a tornar mais sã;
é feita com a força consciente
da luta continuada desta gente
que vive
e sofre
e ri
e canta
e sente
e encharca de suor os dias da semana!

(Cochat Osório, in "Cidade", Luanda 1960)

Ernesto Cochat Osório nasceu em Luanda, em 1917. Relativamente novo, desembarcou em Portugal, onde estudou e se licenciou em Medicina pela Universidade de Lisboa. Mais tarde regressou a Luanda, onde exerceu a profissão de médico. Obra poética: Calema, 1956, Luanda, Lello; Cidade, 1960, Luanda, Rotary Club de Luanda; Poemas, 1966, Luanda, Lello.

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