sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

A paz sem vencedor e sem vencidos - Sophia de Mello Breyner Andresen

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos, Senhor, a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Às pessoas comuns - Luís Neves

 

(desenho de Fernão Campos)

Dedico este livro às pessoas comuns

 

As pessoas são comuns quando já não querem ser outras.

As pessoas comuns só querem que não as chateiem e mais nada.

As pessoas comuns não esperam a esperança.

 

Ela espera sempre e nunca é esperada,

Ela faz-se adulta mas é sempre criança,

Ela é maior mas é sempre pequena,

Ela é amante antes de ser amada,

Ela é oficial e age como ordenança,

Ela é profissional e pagam-lhe como amadora,

Ela é mestre e ouve como discente,

Ela é doutora e tratam-na como paciente,

Ela é mãe sem deixar de ser filha.

 

Ele nunca é observador é sempre observado,

Ele nunca é escritor é sempre leitor,

Ele é o ator que atua na plateia.

 

Ele queria ser flor e foi sempre mato,

Ele queria ser poema e não passou de letra,

Ele não conseguiu ser fadista nem letra de fado,

Ele queria ser marinheiro e foi faroleiro,

Ele queria ser pastor e foi sempre ovelha,

Ele queria ser dono e foi sempre um animal,

Ele queria ser agricultor mas limitou-se a comer,

Ele nunca tratou da vinha e não lhe faltou de beber,

Ele queria ser eleito e foi sempre eleitor,

Ele queria um mundo melhor mas…

Ele queria ser outro e foi ele mesmo,

Ele queria ser rico e foi sempre pobre,

Ele queria ser história e só teve nome,

Ele queria ser herói e é

Ao meu herói:

O homem comum

Ele foi sempre limpo e não passou de porco,

Ele queria ser lúcido e foi sempre louco,

Ele queria ser muito e foi sempre pouco,

Ele sonhava o futuro e só teve o presente,

Ele queria viver para sempre e morreu,

Comumente

 

- Que é isso de vencer na vida, ó vós incomuns!?

 

Luis Neves

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Nikki Giovanni - Meu poema

Meu poema

eu tenho 25 anos
mulher negra poeta
escrevi um poema perguntando
preto você pode matar?
se eles me matarem
isso não vai parar
a revolução

eu fui roubada
me parece que eles sabiam
que eu ia ser atingida
eles levaram minha tv
meus dois anéis
minha pintura africana
e minhas duas armas
se eles tirarem minha vida
isso não vai parar
a revolução

meu telefone está grampeado
meu e-mail está aberto
eles me colocaram contra
todas as minhas velhas amizades
e contra todos os meus novos amantes
se eu odiar todas as pessoas negras
e todos os pretos,
isso não vai parar
a revolução

eu tenho medo de dizer
pra minha colega de quarto pra onde eu estou indo
e pavor de dizer
pras pessoas se eu vou mesmo
se eu me sentar aqui
pro resto
da minha vida
isso não vai parar a revolução

se eu nunca mais escrever nenhum poema
ou conto
se eu reprovar
a graduação
se meu carro for apreendido
e meu toca-discos
não tocar
e se eu nunca vir
um dia de paz
ou tiver uma atitude preta significativa
isso não vai parar
a revolução

a revolução
está nas ruas
e se eu ficar
no 5º andar
ela vai continuar
se eu nunca fizer
nada
ela vai continuar

Nikki Giovanni

My poem

i am 25 years old
black female poet
wrote a poem asking
nigger can you kill
if they kill me
it won’t stop
the revolution

i have been robbed
it looked like they knew
that I was to be hit
they took my tv
my two rings
my piece of african print
and my two guns
if they take my life
it won’t stop
the revolution

my phone is tapped
my mail is opened
they’ve caused me to turn
on all my old friends
and all my new lovers
if i hate all black people
and all negroes
it won’t stop the revolution

i’m afraid to tell
my roommate where I’m going
and scared to tell
people if I’m coming
if i sit here
for the rest
of my life
it won’t stop
the revolution

if i never write
another poem
or short story
if i flunk out
of grad school
if my car is reclaimed
and my record player
won’t play
and if i never see
a peaceful day
or do a meaningful
black thing
it won’t stop
the revolution

the revolution
is in the streets
and if i stay on
the 5th floor
it will go on
if i never do
anything
it will go on

Publicado no livro Black Judgement (1968)
(Fonte: The Collected poetry of Nikki Giovanni 1968-1998, p. 86-87)

domingo, 15 de dezembro de 2024

AS TRÊS IRMÃS - Manuel Begonha

AS TRÊS IRMÃS

AMIGO

Aquele que te ajuda a dizer não, quando o mais fácil é dizer sim
Aquele que te empresta o último dinheiro que tem no banco
Aquele que te abraça quando choras.
Aquele que te defende quando te vilipendiam

COMPANHEIRO

Aquele que entende as tuas utopias
Aquele que sobe contigo a montanha mais alta
Aquele que vai a teu lado e sabe estar calado

CAMARADA

Aquele que vai contigo defender a Pátria
Aquele que segue o teu caminho para um mundo novo
Aquele que detém a bala para te salvar a vida

Manuel Begonha 

 

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

OS POBREZINHOS - Armindo Mendes Carvalho (dito por Mário Viegas)

 

Ouvir aqui»»» Mário Viegas  Armindo Mendes Carvalho

OS POBREZINHOS

 

Os pobrezinhos

tão engraçados

pedem esmolinha

com mil cuidados

 

Todos sujinhos

e tão magrinhos

a linda graça

dos pobrezinhos

 

De porta em porta

sempre rotinhos

tão delicados

os pobrezinhos

 

Não façam mal

aos pobrezinhos

dêem-lhes pão

e tostõezinhos

 

Os pobrezinhos

tão engraçados

pedem esmolinha

com mil cuidados

 

Armindo Mendes Carvalho

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

HISTÓRIA ANTIGA (1937) - Miguel Torga

 

HISTÓRIA ANTIGA (1937)

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.


Miguel Torga




sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O ASSADOR DE CASTANHAS - ADÃO CRUZ

 

 O ASSADOR DE CASTANHAS

O assador de castanhas

ali na esquina

da Praceta da Palestina

em serena prece à quietude universal

escreve no fumo branco e fugaz

que se funde no ar

a palavra PAZ.

Na canção do silêncio

ali na esquina

da Praceta da Palestina

ergue-se a voz de tanta gente

no fumo branco e fugaz

que se esvai pelo ar

gritando Palestina independente

queremos a PAZ.

O assador de castanhas

rasga as páginas amarelas

com milhares de nomes dentro delas

e embrulha as castanhas

numa dúzia de pessoas

entoando quentes e boas

no fumo branco e fugaz

que sobe no ar

com a palavra PAZ.

Talvez o nosso nome esteja lá

envolvendo as castanhas

ali na esquina

da Praceta da Palestina

e a consciência adormecida

de atrocidades tamanhas

a todos acorde a gritar

no fumo branco e fugaz

que se perde no ar

queremos a PAZ.

Neste caminho cruel

em que o mundo se perde

a cantar e a dançar

alheio a genocídios

e a toda a fome de matar

o assador de castanhas

ali na esquina

da Praceta da Palestina

em serena ode à quietude universal

escreve no fumo branco e fugaz

que se ergue no ar

a palavra PAZ.

 

ADÃO CRUZ

In, A Viagem dos Argonautas

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

25 DE ABRIL DE 1974 - Amadeu Baptista


25 DE ABRIL DE 1974

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a crescer
e a desafiar os enigmas puríssimos da palavra liberdade - no auge da paisagem
a ave indócil a que não renunciámos
é um símbolo fortíssimo contra os símbolos precários, os malogros
antigos,
a fome a que nos querem condenados
sempre que a morte ronda e o exílio
dói
como um cravo recentemente apunhalado.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a enfrentar o medo
que durante tanto tempo nos manteve separados
sem que soubéssemos como e quando acabaria – na terra e no amor
brilham profundamente as lágrimas dos pobres
e o sangue é uma flor misteriosa
que floresce de súbito
quando um grito se ouve no deserto
e uma gaivota volta
para nos contactar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a distribuir o coração
e a partir nesse barco em busca de límpidas aventuras
onde enfeitássemos a vida com sonhos realizáveis
e a solidão fosse completamente impossível – o silêncio abria-se
num manancial de palavras profundamente comovidas
[que nos enchiam de ternura
e nos aproximavam
dos incontáveis registos da fraternidade, a noite
era expulsa para sempre
e os braços davam-se e ardiam.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a felicidade
é algo muito mais tangível do que o que nós pensávamos
se se constrói pedra a pedra e palmo e a palmo se conquista
quando uma vontade solar e a solidariedade
não deixam ninguém ficar desprevenido – o assombro
principia a exercer o seu poder admirável, chega como
uma chuva benigna com o perfil da paz, tem o odor
interminável
da alegria.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a conjugar um futuro
um pouco mais perfeito, a erguer
a cabeça, a defendermo-nos
das múltiplas armadilhas que o ódio arma –
[entrávamos pela manhã
ainda com maior vitalidade
e com um pouco do azul da primavera progredíamos
como um par de namorados:
a proliferante espontaneidade dos seus beijos
transformaria o mundo…

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender que a frescura
é um bem vertiginoso que é necessário preservar cada vez mais
e que não basta a um homem
o benefício das mãos limpas perante a enternecedora figura de esperança
quando os lobos são os mais acérrimos inimigos da exclusiva claridade que há nas praias
e com falsos dentes de oiro esperam um mínimo descuido
para que possam destruir de um só golpe os sonhos e a beleza
de quem abre as portas de par em par a bens muito
[maiores
para que a volúpia entre e alvorece o ar.

A partir desse dia poderíamos ter começado a aprender a agir conclusivamente
sobre o passado, a prevenir
o mal do desencanto.

Amadeu Baptista


quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Revolução - Sophia de Mello Breyner Anderson

Revolução

Como casa limpa

Como chão varrido

Como porta aberta

Como puro início

Como tempo novo

Sem mancha nem vício

Como a voz do mar

Interior de um povo

Como página em branco

Onde o poema emerge

Como arquitectura

Do homem que ergue

Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Anderson

27 de Abril de 1974. [In "O Nome das Coisas

terça-feira, 19 de novembro de 2024

SONETO DE ABRIL - Natália Correia

SONETO DE ABRIL

Evoé! de pâmpano os soldados
rompem do tempo em que Evoé! a terra
salvé rainha descruzando os braços
com seu pé de papiro pisa a fera.

Na écloga dos rostos despontados
onde dos corvos se retira a treva,
de beijo em beijo as ruas são bailados
mudam-se as casas para a primavera.

Evoé! o povo abre o touril
e sai o Sol perfeitamente Abril
maravilha da Pátria ressurrecta.

Evoé! evoé! Tágides minhas
outra vez prateadas campainhas
sois na cabeça em fogo do poeta.

Natália Correia

António Ramos Rosa (poema dedicado a Vasco Gonçalves)

 

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO


Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.

Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada


António Ramos Rosa

(poema dedicado a Vasco Gonçalves)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

GANHAR A VIDA - Jeong Ho-Seung

GANHAR A VIDA

Mãe,
acho que vou fazer uma visita ao Inferno.
Não importa que seja muito longe.
Partirei de manhã como se estivesse a sair para o trabalho,
voltarei à noite como se tivesse saído do trabalho.
Não te esqueças das refeições, mastiga bem os alimentos antes de engolir,
certifica-te que desligas o gás quando saíres
e não te preocupes comigo.
O inferno deve ser um lugar onde vivem pessoas.
Se eu for para o Inferno para ganhar a vida
poderei finalmente tornar-me uma pessoa.

 Jeong Ho-Seung
(Coreia do Sul )
Mudado para português por _ Jorge Sousa Braga

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Adonis / um espelho para o século xx - Ahmad Shamlou


Adonis / um espelho para o século xx

Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor

Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:

É isto
É isto o Século Vinte

Ahmad Shamlou
trad. Maria de Lurdes Guimarães
campo das letras
2001

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

. AO ENCONTRO DO ENCONTRO - Manuel Gusmão

 

Três curtos discursos em homenagem póstuma a Álvaro Cunhal

[primeiro discurso "Uma chama não se prende" AQUI]

 

2. AO ENCONTRO DO ENCONTRO

 

para que eu pudesse fazer o meu caminho pelo

caminho comum e partilhar o tempo

a invenção, o desejo, o trabalho e a luta por

uma terra sem amos

 

para que nas histórias lidas desde a infância

eu aprendesse a descobrir os meus

a articular aquelas palavras

sobre as quais o confronto ainda não terminou

e assim nos movem para que eu pudesse sentir-me esperado sobre

esta terra tão dilacerantemente bela

e tão insuportavelmente devasta

 

para que tendo aprendido a falar eu tivesse

podido encontrar os outros na minha língua

para que eu pudesse olhar, estender as mãos

e encontrar o corpo do mundo

como a minha tarefa comum

 

para que eu viesse e pudesse chegar a esta reunião contínua

esta assembleia de homens

explorados e livres, oprimidos e

livres

 

foi necessário que a convocatória chegasse até mim

foi necessário que eles continuassem reunidos e me esperassem

foi necessário que tu tivesses vindo e chegado antes

que te tivessem acolhido e te tivessem transformado o nome próprio

em nome comum


Manuel Gusmão